Para a mentalidade hodierna, tão avessa ao sofrimento, o martírio de Santa Engrácia de Braga não passa de um episódio próprio a despertar tristeza ou depressão… Não é assim, porém, que a Igreja o considera.

 

Século XI.[1] Um pastor dá de beber às suas ovelhas nas proximidades do Rio Guadiana. De repente, uma luz muito forte começa a sair de dentro das águas… Atônito, o guardião das ovelhas corre para pedir ajuda a algumas pessoas próximas, que logo resgatam o “objeto” que espargia tanta luminosidade: uma cabeça humana, intacta e radiante!

Mais tarde, soube-se que pertencia a uma jovem cristã chamada Engrácia. Ainda pequena, movida por sincera piedade, fizera voto de virgindade. Contudo, seguindo os costumes da época, seu pai acabou prometendo-a em casamento. Aflita com a possibilidade de ser obrigada a romper com seu voto, a jovem fugiu em direção a Castela.

Ao saber do ocorrido, seu noivo partiu furioso ao seu encalço. Encontrou-a no meio dos montes, perto da atual Carbajales de Alba, e tomado de um ódio descontrolado, decapitou-a. Para livrar-se de acusações, guardou a cabeça de sua inocente vítima e, no caminho de volta, lançou-a na água perto da cidade de Badajoz, onde depois foi miraculosamente encontrada.

Para quem não tem fé, este relato desperta apenas tristeza ou depressão. Vista com olhos sobrenaturais, porém, ela relata uma vitória esplendorosa da castidade sobre a concupiscência, e da virtude contra o pecado.

Ora, como é difícil para o mundo atual, com uma mentalidade tão avessa ao sofrimento, compreender a beleza do martírio sofrido por amor a Deus…! Os homens de hoje julgam inadmissível que alguém aceite enfrentar a morte, com ânimo, em defesa de sua fé e de seus ideais; e proclamar o contrário significa ser considerado “louco” ou “fanático”.

Qual é, afinal, o sentido do sacrifício da vida de tantos cristãos martirizados ao longo da História? Foram eles apenas radicais desequilibrados, que jogaram no lixo sua própria existência? Qual é o verdadeiro valor do seu holocausto?

Olhares fixos na Eternidade!

Assim como uma águia só encontra razão de existir em desafiar os ares e contemplar o sol em todo seu esplendor, a vida humana só tem verdadeira explicação em função da Eternidade.

A travessia deste vale de lágrimas é, para todo homem, uma simples passagem durante a qual deve batalhar e adquirir méritos para conquistar a Pátria Celeste. Morar junto a seus irmãos, os justos, membros da família de Deus: esta é a verdadeira vida!

Sob esse prisma sobrenatural, torna-se fácil compreender o heroísmo dos mártires. Eles “foram torturados, por recusarem ser libertados, movidos pela esperança de uma ressurreição mais gloriosa”! (Hb 11, 35). Não colocaram sua esperança nesta vida efêmera, mas naquela herança incorruptível, incontaminável e imarcescível, reservada para eles nos Céus (cf. I Pd 1, 4).

Sabiam que, “semeado na corrupção, o corpo ressuscita incorruptível; semeado no desprezo, ressuscita glorioso; semeado na fraqueza, ressuscita vigoroso” (I Cor 15, 42-43). Assim, num supremo ato de amor a Deus, optaram por manter íntegra sua fé e rejeitar os capciosos convites para o pecado. Não se intimidando ao ver abreviados os seus dias nesta mísera terra de exílio, alegraram-se, pelo contrário, de poder conquistar com gloriosa antecedência o eterno Reino dos Céus!

Aqueles que prendem seu coração a este mundo e fazem dos prazeres desta vida seu fim último não são capazes de compreender a grandeza desse gesto. São como águias sem asas, frustradas, sem futuro a não ser a morte perpétua…

Ora, ensina a Escritura que “os ímpios terão o castigo que merecem seus pensamentos […]. A esperança deles é vã, seus sofrimentos sem proveito, e as obras deles inúteis. […] Ainda que vivam muito tempo, serão tidos por nada e, finalmente, sua velhice será sem honra. Caso morram cedo, não terão esperança alguma, e no dia do julgamento não encontrarão nenhuma piedade” (Sb 3, 10-11.17-18).

“Quæ utilitas in sanguine eorum?”[2]

Aos olhos de Deus a morte de um mártir é mais preciosa do que mil vidas levadas longe de seu temor. “A figura deste mundo passa” (I Cor 7, 31) para todos os homens; bem-aventurados, pois, os que sabem se desapegar de sua vida por causa de Jesus!

À semelhança do Martírio padecido por Cristo, o sangue derramado pelos mártires em íntima união com Ele conquista de Deus para toda a Igreja – padecente, militante e gloriosa – graças insignes e dons preciosíssimos que podem até mesmo mudar os rumos da História.

Com efeito, por detrás da fidelidade de uma Santa Clara, que expulsou apavorados para longe de seu convento centenas de infiéis, ou de um grande São Luís IX, que santificou o Reino da França e empreendeu árduas cruzadas, não estará talvez o valor sobrenatural do sangue de uma Santa Engrácia? Não terá ela contribuído abundantemente, com sua generosidade despretensiosa, na correspondência e perseverança dessas e de tantas outras vocações magníficas? Não nos é ilícito pensar que sim.

Martírio do Beato Nicolau Alberca e companheiros – Igreja de São Francisco, Puebla (México)

Sejamos mártires de amor!

Em meio às incertezas desta vida, com frequência nos assaltam padecimentos, grandes ou pequenos, físicos ou espirituais. Nestes momentos, recordemo-nos: o que tornou agradável a Deus o sacrifício dos mártires e de todos os Santos não foram tanto os tormentos que suportaram, mas sobretudo o amor cristalino com o qual se imolaram.

A menor dificuldade que enfrentemos, o mais singelo sacrifício realizado ao longo de nosso dia a dia, se forem embebidos de caridade ardente, serão recebidos por Deus como um agradável holocausto. Ele os aceitará como um valioso “martírio” e se utilizará deles para derramar graças sobre nossos irmãos na fé e para promover o triunfo da Santa Igreja.

Se nosso coração estiver inflamado de amor, mesmo que não tenhamos de derramar o nosso sangue num martírio cruento, seremos dignos de ser contados no número das ardorosas hóstias vivas de Cristo. Templos do Espírito Santo, seremos espetáculos de heroísmo, almas angelicais das quais o mundo não é digno! (cf. Hb 11, 38).

Colhidos por Deus como sacrifício agradabilíssimo e de suave odor, nossos atos pervadidos de amor tornar-nos-ão brilhantes luzeiros para todo o sempre!

 

Notas

[1] Não há dados seguros sobre a data deste episódio, mas José Luis Repetto Betes afirma ter se dado “na metade do século XI, no reinado de Fernando I de Castela e Leão” (ECHEVERRÍA, Lamberto de; LLORCA, SJ, Bernardino; REPETTO BETES, José Luis (Org.). Año Cristiano. Madrid: BAC, 2003, v.II, p.615.).
[2] Do latim: “Qual é a utilidade do sangue deles?”

 

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