Excelência da santa infância de Maria – A luz e a ciência das quais Maria estava repleta

Pode a ciência humana e natural, destituída de humildade, ser a raiz de todos os males e a causa da perdição de uma infinidade de almas?

 

Muito perigosa é a ciência humana — a qual se adquire pela força ou pelo trabalho do espírito humano, seja pela leitura de livros, seja por qualquer outro meio — quando não tem por companheira a humildade. Em vez de ser uma luz a iluminar o espírito, ela é uma escura noite que o enche de trevas.

Nossa Senhora Menina, por Zurbarán- Museu do Hermitage, São Petersburgo

Ciência que incha o coração e conduz à morte

É um veneno que incha o coração e o faz estourar e morrer: “Scientia inflat” (I Cor 8, 1). Uma funestíssima morte. É o ódio do dragão infernal, com o qual ele envenenou o primeiro homem e toda a sua posteridade, quando disse: Se comerdes deste fruto proibido, sereis esclarecidos como Deus, conhecereis tudo, tanto o bem quanto o mal: “Eritis sicut Dii, scientes bonum et malum” (Gn 3, 5). É um punhal nas mãos de um frenético, o qual o usa para apunhalar todos quantos consiga agarrar, e para matar-se a si mesmo. É uma peste que produz estranhas devastações na própria casa de Deus, sua Igreja, pois é a mãe dos cismas, das heresias, das apostasias e das incontáveis desgraças por elas arrastadas atrás de si. É uma flecha envenenada com a qual o monstro da heresia conduz à perdição infinito número de almas miseráveis.

Por meio dela pereceram os Ários, os Nestórios, os Eutiques, os Luteros, os Calvinos e grande número de outros heresiarcas que moveram e movem incessantemente uma guerra tão sangrenta contra a Igreja que se pode dizer com segurança não ter esta suportado da parte dos Neros, dos Domicianos, dos Dioclecianos, dos Maximianos e de outros tiranos perseguição tão cruel como a que sofreu e sofre todos os dias da parte dos homens eruditos e soberbos. Pode-se, assim, dizer com toda verdade que a ciência humana e natural, destituída de humildade, é a raiz de todos os males e a causa da perdição de uma infinidade de almas.

Ciência que dissipa as trevas infernais e santifica as almas

Mas a ciência divina e sobrenatural, a qual é infundida pelo Espírito Santo e é um de seus dons, inseparável do dom de piedade — “Spiritus scientiæ et pietatis” (Is 11, 2, Vulgata) —, é a ciência da salvação e a ciência dos Santos, que dissipa as trevas infernais, esclarece com a luz do Céu o espírito do homem e enche seu coração de amor a Deus, de caridade para com o próximo, de humildade em relação a si mesmo e de desprezo por todas as coisas do mundo. Pois esta luz, revelando ao homem a grandeza e a bondade de Deus, leva-o a honrá-Lo e amá-Lo, fazendo-o ver o próximo como imagem e filho de Deus; ela o incita também a amá-Lo, dando-lhe conhecimento de seu nada e de suas imensas misérias; ela o obriga a se humilhar e, ensinando-o a conhecer a vileza e a vaidade de todas as coisas deste mundo, imprime em seu coração um grande desprezo por tudo quanto este estima.

Deste modo, esta ciência, infundida pelo Espírito Santo, não nos traz o veneno do pecado, mas a unção da graça; não envenena as almas, mas as santifica; não incha os corações, mas os torna humildes; não mata quem a acolhe, mas dá-lhe a vida dos Anjos, dos Santos, do próprio Deus. Por este motivo, ela se chama, segundo a Palavra divina, ciência de salvação, ciência dos Santos, ciência de Deus: “Vani sunt omnes, in quibus non subest scientia Dei” (Sb 13, 1). Não passam de vaidade e puro nada todos os homens que não têm a ciência de Deus.

Esta é a ciência da qual a Santíssima Virgem foi repleta desde sua santa infância. É uma ciência infusa e uma luz sobrenatural da qual Ela refulge de modo extraordinário desde o momento de sua Imaculada Conceição. Pois, além de tudo quanto acima dissemos a este respeito, vários insignes teólogos ensinam que Ela teve, desde o primeiro momento de sua vida, um conhecimento da Santíssima Trindade mais claro do que aquele dado aos Anjos e ao primeiro homem, em sua santidade original; e que, se o pequeno João Batista, estando ainda no ventre de sua mãe, conheceu o Verbo Encarnado nas sagradas entranhas da Virgem, não se pode duvidar de que essa santa criança tenha tido conhecimento do mistério da Encarnação desde quando estava no seio maternal de Santa Ana.

João Calvino, por Maurício Raymond – Museu Internacional da Reforma, Genebra (Suíça)

Conhecedora dos mistérios encerrados nos Livros divinos

Muito mais, entretanto, diz São Bernardo,1 pois assegura que desde o início de sua vida Ela foi plena e divinamente instruída a respeito de todos os mistérios.

E São Bernardino de Sena2 declara que, estando ainda no ventre de sua mãe, Maria teve sete espécies de conhecimentos claros e distintos: de Deus, dos puros espíritos, dos espíritos unidos a corpos, das coisas materiais, daquelas das quais é preciso fugir, daquelas que se deve abraçar, e das regras e meios adequados para fazer uma e outra coisa. […]

Se esta maravilhosa criança teve conhecimentos tão extraordinários desde os primeiros meses de sua vida, que não se pode dizer do seu progresso na ciência de Deus após os anos de sua infância, sua luz crescendo sempre, dia a dia, por diversos meios?

Pois, antes de tudo Ela teve o uso da razão desde o primeiro instante de sua vida; e concedeu-lhe Deus um espírito excelente, isento de tudo quanto pudesse perturbar sua paz e tranquilidade, e sempre disposto a receber as luzes do Céu, não tendo em si nada capaz de opor a isto o menor obstáculo.

Em segundo lugar, o exercício da mais alta contemplação, que Lhe era familiar e ordinária, A enchia das mais belas luzes celestiais.

Em terceiro lugar, sua frequente conversação com os Anjos, sobretudo com São Gabriel, proporcionava-Lhe grandes conhecimentos das coisas celestes e eternas.

Em quarto lugar, conforme escrevem São Sofrônio3 e São Gregório de Nissa,4 tendo Ela aprendido em seus tenros anos a santa língua, a hebraica, aplicava-Se com frequência, de modo especial quando estava no Templo, à leitura e à meditação das divinas Escrituras, das quais Lhe dava o Espírito Santo entendimentos tão claros que, conforme diz Santo André de Jerusalém,5 Ela não ignorava os mistérios nelas contidos. E Santo Agostinho assim se exprime: “Lembrai-Vos, ó Maria, daquilo que lestes nos profetas, pois não podeis ignorar os mistérios encerrados nos Livros divinos, porque deveis dar à luz Aquele que contém em Si a plenitude de todas as luzes proféticas”.6

Em quinto lugar, o espírito de profecia, que foi concedido até mesmo a virgens pagãs, como as Sibilas, não podia faltar à Rainha das Virgens santas. Demonstra isto seu admirável cântico, do qual todas as palavras são outros tantos oráculos do seu espírito profético. Por este motivo, São Basílio, São Jerônimo, São Cirilo e Santo Agostinho Lhe atribuem o nome e a qualidade de Profetisa.

Em sexto lugar, a graça das divinas revelações, comum a vários dos fiéis servos de Deus, não foi negada à sua Mãe.

Em sétimo lugar, quem poderia compreender as luzes admiráveis das quais o Espírito Santo, que A possuía e animava perfeitamente, enchia sem cessar seu espírito e seu coração?

São Bernardo, por Philippe Quantin – Museu de Belas Artes, Dijon (França)

Sol que ilumina os Anjos e os homens

Recordo-vos, ademais, o que foi dito acima, no oitavo capítulo da primeira parte deste livro: vários ilustres doutores têm por certo que esta divina criança foi tão repleta de luzes desde o primeiro momento de sua vida, que Ela viu a face de Deus.

À vista de todas essas coisas, imaginai, se possível for, os progressos feitos por Ela nas vias da ciência e da sabedoria do Céu ao longo de sua infância. E se sua infância foi tão iluminada, que dizer do restante de sua vida? Para compreender muitas coisas em poucas palavras, necessário é dizer que Ela: é a Mãe do Sol eterno; é uma estrela que produziu um sol; é um segundo sol que ilumina os Anjos e os homens; é a Mulher admirável do Apocalipse, a qual tem sob seus pés a Lua, está cingida por uma coroa de doze estrelas e revestida do Sol, ou seja, foi exalçada acima de todas as luzes e ciências deste mundo; está coroada de todos os fulgores dos Anjos e dos Santos, com uma tal eminência que diante d’Ela eles se apagam do mesmo modo como as estrelas desaparecem diante do Sol; está cercada e revestida do sol da própria Divindade; concebeu e deu à luz Aquele que é a luz do mundo; fez nascer em seu coração, no primeiro instante de sua vida, e trouxe sempre nesse mesmo coração, desde sua infância até o fim de sua existência, e trará eternamente, Aquele que contém em Si os tesouros da ciência e da sabedoria de Deus: “In quo sunt omnes thesauri sapientiæ et scientiæ Dei” (Col 2, 3).

Não deve, pois, causar surpresa o fato de Ela ser chamada de “a fonte eterna da verdadeira luz”7 por São João Damasceno; de “Mestra de todos os doutores”,8 por São Gregório Magno; de “um tesouro de sabedoria”,9 por São João Damasceno. Não surpreende também ouvir São Bernardo garantir que Ela penetrou no mais profundo dos abismos da divina sabedoria: “Profundissimam Dei sapientiæ penetravit abyssum”;10 e foi imergida e absorvida na luz inacessível da Divindade: “Luce illi inaccessibili videtur immersa”.11

Tornai-nos sábios no conhecimento de nós mesmos

Ó divina Maria, não é sem razão que Deus Vos deu este glorioso nome, o qual significa iluminada, iluminadora e luminosa. Ele Se chama Pai das luzes e Senhor das ciências: “Deus scientiarum Dominus” (I Sm 2, 3), e quer associar-Vos a Ele nestas divinas qualidades, quer que Vós sejais a Mãe das luzes celestiais e a Mestra das santas ciências. Seja Ele eternamente bendito, louvado e glorificado por isso. Tornai-nos, pois, por complacência, participantes de vossas sagradas luzes e de vossa divina ciência. Protegei-nos da ciência perniciosa que infla o coração e envenena a alma; dessa maldita ciência que é filha do orgulho, irmã da presunção, nutriz da curiosidade, alma da arrogância, mãe da impiedade e da apostasia, e causa da rebelião contra Deus e sua Igreja. Dai-nos o conhecimento da ciência da salvação, da ciência dos Santos, dessa bela e desejável ciência que é filha da caridade, mãe da humildade, irmã da submissão, companheira inseparável da piedade: “Spiritus scientiæ et pietatis” (Is 11, 2, Vulgata), coração da santidade e nutriz de todas as virtudes.

As duas Trindades, por Francisco Camilo – Museu da Navarra, Pamplona (Espanha)

Ouço um de vossos mais queridos filhos, São Bernardo,12 enumerar cinco tipos de pessoas à busca do saber. Primeiro, o daqueles que querem saber apenas por saber: é uma perigosa curiosidade. Segundo, o dos que pretendem saber para ostentar sua ciência: é uma condenável vaidade. Terceiro, o dos que procuram saber para vender sua ­ciência: é uma vergonhosa avareza. Outros, porém, almejam saber para serem capazes de instruir e edificar o próximo: é a caridade. Outros, por fim, para se instruir e edificar a si mesmos: é a prudência.

Não permitais, ó Santa Virgem, que sejamos do número dos três primeiros, os quais fazem tão mau uso de sua ciência. Fazei que, ao contrário, não usemos nossos conhecimentos a não ser para dar instruções salutares a nosso próximo, e para nos tornarmos mais agradáveis à divina Majestade. Sobretudo, tornai-nos sábios no conhecimento de nós mesmos, de nosso nada, de nossos defeitos, de nossas fraquezas, de nossas insondáveis misérias, para que este conhecimento nos conduza à verdadeira humildade, pois, como diz o mesmo São Bernardo, é bem verdade que das várias ciências existentes entre os homens, nenhuma há melhor que a de conhecer-se a si mesmo: “Multæ sunt scientiæ hominum, sed nulla melior est illa, qua cognoscit homo seipsum”.13

 

Excertos de L’Enfance admirable de la Très Sainte Mère de Dieu. Parte II, c.9. In:
“Œuvres complètes du vénérable Jean Eudes”. Vannes: Lafolye Frères, 1907, t.V, p.367-374 –
Tradução, título e subtítulos: Arautos do Evangelho

 

Notas


1 Cf. Homil. 4 super Missus est. De seu lado, Santo Alberto Magno faz em seu tratado Super Missus est, c.149, uma longa enumeração dos conhecimentos infusos da Santíssima Virgem. Cf. Vega, Theol. Mar., n.968. (As notas de rodapé correspondem à edição original).

2 Cf. Serm. 4 de Concept., a.1, c.2.

3 Cf. Sermo de Assumpt.

4 Cf. Sermo de Nat.

5 Cf. In Salut. Deiparæ. S. Epiphan., apud Pelbart. in Stellario, l.5, p.3, a.2, c.3.

6 Serm. 5 de Nativ.

7 Orat. de Dorm. Virg.

8 Homil. in Evang.

9 Orat. de Dorm. Virg.

10 Sermo in Signum magnum.

11 Idem, ibidem.

12 Cf. Serm. 36, Sup. Cant.

13 Lib. de inter. domo, c.29.

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