Os Apóstolos, endurecidos por uma falsa concepção a respeito da missão de Jesus, não deram ouvidos à sua voz. Sejamos vigilantes para que jamais nos aconteça o mesmo.

 

Evangelho do II Domingo da Quaresma

Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E transfigurou-Se diante deles. Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a Terra poderia alvejar. Apareceram-lhes Elias e Moisés, e estavam conversando com ­Jesus. Então Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que dizer, pois estavam todos com muito medo.

Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que Ele diz!” E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles.

Ao descerem da montanha, Jesus ordenou que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. 10 Eles observaram esta ordem, mas comentavam entre si o que queria dizer “ressuscitar dos mortos” (Mc 9, 2‑10).

I – Deus não poupou seu próprio Filho

Logo nos primeiros passos da Quaresma, período dedicado à penitência, surpreende-nos o teor das leituras do 2º Domingo. Após uma semana centrada no chamado à conversão e na luta contra as tentações, somos convidados a contemplar a Transfiguração de Nosso Senhor Jesus Cristo, momento de glória e esplendor. Por que esta mudança de impostação? Ao considerar tal mistério, a Igreja tem o objetivo de nos fazer refletir sobre o que há por detrás das aparências da vida, as quais, na verdade, constituem uma parcela da realidade, e não a realidade inteira, absoluta, que se oculta aos sentidos! Entenderemos melhor este princípio analisando os diferentes textos da Liturgia do dia, à luz deste singular acontecimento: a Transfiguração. 1

Na raiz da promessa, Deus exige abnegação

Na primeira leitura (Gn 22, 1‑2.9a.10-13.15‑18) encontramos um fato dos primórdios do povo eleito, marcante na História da salvação. Abraão era um arameu já ancião, como também sua esposa Sara, que não tivera filhos. Não obstante, Deus lhe prometera que ele daria origem a uma vasta descendência, mais numerosa que as estrelas do céu (cf. Gn 15, 5), uma autêntica nação (cf. Gn 12, 2). Ora, este não seria um povo comum, pois dele haveria de nascer o Redentor, Jesus Cristo. Mais adiante o Senhor anunciaria que Sara daria à luz um filho (cf. Gn 17, 16). Abraão acreditou, nascendo-lhe Isaac, apesar de sua idade avançada. Este filho — encantador, inteligente e intuitivo, como se deduz do relato bíblico — cresceu cercado pelo afeto e a admiração plena de um pai que, tempos antes, já não contava com vir a ter um herdeiro.

Em certo momento, Deus quis submeter Abraão a uma prova, porque como retribuição a todo dom ou privilégio que Ele concede deve haver sacrifício e abnegação. E quanto maior a dádiva, maior a doação requerida da criatura. Assim, para estar à altura de tão elevado chamado e ter o prêmio, a luz e a glória de ser antepassado do Messias, de um Homem que é também Deus, era preciso que Abraão fosse provado e demonstrasse total flexibilidade aos desígnios da Providência. Sem esse mérito não haveria base suficiente para uma vocação de tamanha grandeza.

Uma cena pungente marcada pela provação axiológica

Quando Isaac atinge, talvez, a idade de nove anos, Deus exige que Abraão o entregue em holocausto. O patriarca tinha verdadeiro apreço pelo menino, porque era seu sucessor, o filho da bênção, vindo das mãos do Senhor. Contudo, Ele agora o pedia de volta. Se hoje nós sabemos que não convém os médicos operarem os próprios filhos, por carecerem, normalmente, de estabilidade emocional para isso, como vamos esperar que um pai tenha forças para sacrificar aquele que é carne de sua carne? Abraão, porém, não titubeou, e agiu sem o menor receio de fazer a vontade de Deus.

O Gênesis não conta quais foram as aflições interiores de Abraão, suas perplexidades e problemas axiológicos diante de tal situação, mas é evidente que sentiu uma dor mais profunda do que se ele mesmo se oferecesse como vítima, e seu filho Isaac o apunhalasse e o lançasse às chamas de uma fogueira para ser consumido. Como confiar no juramento feito por Deus, enquanto renunciava ao filho único? Estaria o Senhor descontente com ele — pois, afinal, todo homem concebido no pecado original tem suas imperfeições — e por isso lhe arrebatava o herdeiro? Haveria cometido alguma falta oculta? Que tormentos inenarráveis não o terão assaltado ao galgar o monte! É provável que não os tenha revelado a ninguém, guardando em seu coração esse terrível drama passado entre ele e Deus.

Sacrifício de Isaac – Igreja de São Nicolau, Markdorf (Alemanha)

Abraão convidou Isaac para subirem juntos a colina e imolarem uma vítima, levando consigo todos os elementos necessários: a lenha, o fogo e dois servos para os auxiliarem (cf. Gn 22, 3). Ora, o pequeno, já na idade dos porquês e possuidor da inteligência toda feita de lógica tão comum aos hebreus, não entendeu o que ia acontecer e indagou: “Temos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a ovelha para o holocausto?” (Gn 22, 7). O pai, que costumava resolver amorosamente as dúvidas de Isaac em todas as circunstâncias, procurando aproveitar qualquer ocasião para lhe transmitir seus conhecimentos, foi obrigado a responder: “Deus providenciará” (Gn 22, 8). Enquanto avançavam, ia ele entretendo a criança, mas o coração palpitava de angústia. É presumível que Abraão tivesse preferido morrer no caminho, antes ainda de tocar o sopé da montanha, e, no entanto, sentia que Deus lhe dava energia para prosseguir. Chegando ao local indicado por Deus, preparou a lenha, e quiçá Isaac tenha perguntado pela vítima uma última vez. Por fim, Abraão o amarrou e o deitou sobre o altar. Isaac, que herdara o temperamento do pai e dele recebera a fé, logo percebeu tudo, e não disse uma palavra, entregando-se com total obediência e flexibilidade. Cena pungente! Abraão está disposto a salpicar suas mãos com o sangue daquele único descendente, que era uma dádiva do Céu e a promessa de seu futuro.

Deus não permitiu, todavia, que o menino fosse morto, porque não necessitava desta oferta. Ele queria, isto sim, o sacrifício da inteira conformidade de Abraão com a sua vontade, da generosidade plena, por mais desconcertantes que fossem as aparências, e, ao mesmo tempo, a submissão de Isaac para deixar-se imolar sem qualquer queixa. Quando Abraão ergue o punhal com toda a fé, prestes a cravá-lo em Isaac, uma voz angélica se faz ouvir: “Abraão, Abraão! […] Não estendas a mão contra teu filho e não lhe faças nenhum mal! Agora sei que temes a Deus, pois não Me recusaste teu filho único” (Gn 22, 11‑12). Era a ordem que ele ansiava para evitar o momento trágico da execução. Não obstante, assim como o homem é condenado por suas ­intenções — se ele arquiteta um crime, por exemplo, e nem consegue executá-lo por razões circunstanciais, peca em seu interior —, Abraão “foi justificado em virtude de sua observância” (Rm 4, 2). Com efeito, não só ele aceitou o que Deus havia determinado, como tomou todas as providências para que o sacrifício de Isaac se consumasse. Como recompensa, recebeu de volta o filho do qual já se desapegara, em meio a grande alegria, rendendo graças a Deus.

Deus, que salvou Isaac, imolou o próprio Filho

E “Abraão, erguendo os olhos, viu um carneiro preso num espinheiro pelos chifres; foi buscá-lo e ofereceu-o em holocausto no lugar do seu filho” (Gn 22, 13). Neste episódio encontramos um indício do futuro resgate dos primogênitos prescrito pela Lei Mosaica após a partida do Egito (cf. Ex 13, 13; 34, 19‑20), quando o sangue do cordeiro sem defeito, nas ombreiras e na verga das portas, preservou do Anjo exterminador os primogênitos do povo eleito (cf. Ex 12, 5‑13). Aquele animal era, na realidade, um símbolo do Cordeiro verdadeiro, o Cordeiro de Deus, pois o Senhor, que perdoa a vida do filho de Abraão, não livra a do seu próprio Filho, nem O exime do mais ignominioso dos suplícios, isto é, a morte de Cruz, a fim de manifestar o seu amor por nós. Sim, o que aconteceu a Abraão não se deu no Calvário, onde Deus — como diz o Apóstolo, na segunda leitura (Rm 8, 31b‑34) — “não poupou seu próprio Filho, mas O entregou por todos nós” (Rm 8, 32). No Gólgota vemos o Filho único de Deus coroado de espinhos, flagelado, desprezado e ultrajado pelas imundícies dos algozes, que cuspiram sobre Ele. Cristo era uma chaga da cabeça aos pés, a ponto de seus ossos poderem ser contados (cf. Sl 21, 18). Chegada a hora da Crucifixão, após a Via-Sacra, em que caiu três vezes sob o peso da Cruz, o Unigênito de Deus é morto! Foi aniquilado por nossa causa, pois desejava que fôssemos salvos: “não Me comprazo com a morte do pecador, mas antes com a sua conversão, de modo que tenha a vida” (Ez 33, 11).

Que desígnios existirão por detrás disso? Por que Deus submete Abraão a esta prova e permite que seu Filho seja imolado? Consideremos um princípio infalível: sendo Deus o Bem em essência, não pode pecar, 2 e sempre que age, tem em vista um benefício. Se Ele submeteu à prova o patriarca e fez seu Filho passar pelos horrores da Paixão, foi porque quis o bem. Não haveria o Pai de procurar o máximo para Aquele de quem afirma no Evangelho: “Este é o meu Filho amado”? Mas como compreender que a Cruz seja algo excelente? Como aceitar que o martírio de um Filho signifique para Ele o que há de melhor? A nossa razão humana, se não for auxiliada pela graça de Deus e pela fé, não consegue captar tal beleza.

Eis o motivo pelo qual a Igreja medita, em plena Quaresma, na Transfiguração do Senhor: ela quer nos colocar numa nova impostação, pois assim como o Redentor Se transfigurou para dar força aos Apóstolos e levá-los a admitir que era Deus e continuaria a sê-lo, mesmo morto e crucificado, nós também devemos aprender que o sofrimento e a cruz, por mais negra que se apresente, contêm no fundo um sorriso divino e uma como que ressurreição, um fulgor e uma glória.

II – Uma deficiente visualização do Salvador

A Transfiguração do Senhor se deu numa ocasião de fundamental importância. Narra o Evangelho de São Mateus que este mistério ocorreu seis dias depois da confissão de Pedro (cf. Mt 17, 1), a qual tornara patente aos Apóstolos que Nosso Senhor era Deus e Homem verdadeiro (cf. Mt 16, 16). Em consequência da união entre a natureza divina e a natureza humana realizada na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Jesus é inteiramente Homem — e, enquanto tal, sentia fome, sede e os efeitos de outras contingências —, mas tudo n’Ele é adorável, por ser Deus. Num aparente paradoxo em relação ao reconhecimento de sua divindade, Cristo predissera em termos claríssimos a futura Paixão (cf. Mt 16, 21), anúncio que os Doze não haviam assimilado, pois eles ainda alimentavam toda espécie de ilusões a respeito da conquista do poder temporal em Israel. Devem ter comentado largamente, ao longo desses dias, uma suposta vitória de alcance extraordinário, cuja máxima expressão seria o triunfo político, social e financeiro. Sucessos com que os homens de todas as épocas sonham e pelos quais, não raras vezes, se deixam inebriar, embora constituam apenas o resto a ser concedido desde que procuremos o principal, segundo o ensinamento de Nosso Senhor: “Buscai antes o Reino de Deus e a sua justiça e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” (Lc 12, 31). Os discípulos, contudo, não tinham aprendido esta lição, apesar de toda a doutrina então recebida do Divino Mestre, e continuavam na expectativa de um reino terreno em que tudo seria maravilhoso, pois, afinal, o que não esperar de um Deus feito Homem, com domínio sobre a natureza? Jesus era Aquele que tinha solução para tudo e, portanto, a felicidade eterna ia se estabelecer sobre a face da Terra! Por isso a tendência dos Apóstolos, contrariamente ao que Nosso Senhor lhes comunicara, era julgar que a fase do sofrimento estava encerrada… Ilusão! Porque é só pela cruz que se chega à luz: “Per crucem ad lucem!”.

Escolhidos para sustentar a fé dos outros

Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E transfigurou-Se diante deles.

Jesus escolheu três Apóstolos especialmente amados para presenciar a Transfiguração, a fim de que, mais tarde, fossem estes as testemunhas da sua divindade. Quando O contemplassem orando e suando Sangue no Horto das Oliveiras, e depois enfrentando os terríveis lances de sua ­Paixão e Morte, era preciso terem na lembrança esta experiência mística, para não perderem a fé. Com tal sustentação, nem sequer uma realidade tão dramática quanto a do ­Getsêmani poderia toldar a certeza plena adquirida no Tabor — onde Ele lhes mostrara sua verdadeira figura —, mediante a qual compreenderiam quem, de fato, estava sofrendo: o próprio Deus. Assim, Nosso Senhor desejava garantir aos Apóstolos que todos os acontecimentos futuros fossem para a sua glória.

Gloriosa manifestação

Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a Terra poderia alvejar.

Deste versículo se depreende que, já naquele tempo, havia pessoas especializadas em lavar as roupas primorosamente. Mas o Evangelista declara que em nenhuma parte da Terra — o que, de modo profético, abrange toda a História — alguém seria capaz de tornar quaisquer vestes tão brancas quanto as d’Ele. A transformação da aparência das roupas é sinal patente de que Nosso Senhor, como diz São Tomás, 3 manifestou em seu exterior a glória de sua Alma, fazendo refulgir por alguns instantes a claridade, característica dos corpos gloriosos. Dado que a alma é a forma do corpo, a glória daquela redunda também na glória deste. Ora, se em virtude da união hipostática a Alma de Nosso Senhor foi criada na visão beatífica, o normal seria que seu Corpo gozasse de igual perfeição. No entanto, Cristo suspendeu para Si esta lei, por Ele mesmo estabelecida, assumindo um corpo padecente com vistas a operar a Redenção. Apesar disso, encontramos ao longo de sua vida uma série de circunstâncias em que Ele teve, de maneira miraculosa, determinadas propriedades do corpo glorioso: a sutileza, ao nascer, passando do claustro interior de Nossa Senhora para os braços d’Ela, sem feri-La nem causar-Lhe dano algum; a impassibilidade, quando quiseram apedrejá-Lo e matá-Lo em Nazaré, e Ele escapou ileso (cf. Lc 4, 29‑30); a agilidade, caminhando sobre as águas (cf. Mt 14, 25); e a claridade, como vimos, na cena da Transfiguração, em que a brancura das vestes, dava “uma bela ideia da glória que nos está prometida. Quanto brilho tem ela, uma vez que ofusca até o próprio Sol! E quanto ela é abundante, pois tendo preenchido todo o Corpo, atravessa até as vestes!”. 4

Jesus a caminho do Calvário, por Duccio de Buoninsegna – Museu dell’Opera del Duomo, Siena (Itália)

Os representantes da profecia e da Lei prestam homenagem a Jesus

Apareceram-lhes Elias e Moisés, e estavam conversando com Jesus.

Segundo a Lei de Moisés, duas testemunhas eram suficientes para haver certeza judicial (cf. Dt 17, 6; 19, 15). Assim, neste fato extraordinário, Nosso Senhor fez-Se acompanhar por Elias e Moisés. Ao primeiro, enquanto símbolo e expoente máximo do filão de profetas do Antigo Testamento, cabia testemunhar que Ele era Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade Encarnada. Já a presença de Moisés dava a entender que a legislação por ele promulgada tinha sido, na verdade, inspirada pelo Verbo. O Redentor não vinha, portanto, contra a Lei nem contra os profetas, mas era a realização de todos oráculos e o complemento final e aperfeiçoado da Antiga Lei.

Estupor face à magnificência da graça recebida

Então Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que dizer, pois estavam todos com muito medo.

A cena foi a tal ponto grandiosa que São Pedro ficou estupefato. É frequente os autores traduzirem o pedido de levantar três tendas como um desejo de prolongar indefinidamente aquela maravilha. Em certo sentido a observação pode ser válida, porém o texto evangélico é claro ao relatar que ele teve medo e não sabia o que dizer. Como era muito comunicativo, viu-se impelido a fazer um comentário. Parece, pois, mais apropriado admitirmos que Pedro estava aturdido porque vira a Palavra, sem conseguir interpretá-La; mas logo vieram do alto as luzes necessárias para isso.

O Pai ama totalmente o Filho

Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que Ele diz!”

Quando amamos determinada criatura, somos atraídos pelo bem que nela existe. Se gostamos, por exemplo, de um panorama, é porque vemos a beleza e o bem nele depositados por Deus. Esta perfeição é anterior ao movimento de nossa vontade, que voa para aquela forma de pulcritude. Entretanto, com Deus se passa o oposto. Seu amor faz com que o bem penetre naquilo que ama, promovendo a bondade dos seres. Ora, essa caridade — que n’Ele é infinita — esgotou-se em seu Filho Unigênito, em quem pôs toda a sua complacência, como dirá outro Evangelista (cf. Mt 17, 5). Deus O amou sobremaneira, porque era seu único Filho.

Nós, meras criaturas, somos amados pelo Criador e recebemos a infusão de sua bondade, mas nunca correspondemos à altura de seus dons, ou seja, sempre estamos aquém daquilo que deveríamos dar. A despeito disso, Ele ainda nos ama. E quanto mais nos amaria se a nossa restituição fosse maior! Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo contrário, deu absolutamente tudo o que era possível, a cada instante, em retribuição ao Pai, despertando com isto um amor todo especial, razão das palavras: “Este é o meu Filho amado”. Em decorrência desse amor, Jesus é Aquele que resume e reúne em Si tudo o que saiu das mãos divinas. E na Cruz, ao reparar por inteiro a ordem da criação, Ele conquistou, enquanto Homem, o título de Rei, Salvador e Redentor nosso, que já possuía por ser Deus, como recorda São Cirilo de Alexandria: “sendo Deus desde todo o sempre, ascende de nossa limitada condição até a glória excelente da divindade”. 5 E assim o Pai Lhe dá todo louvor e honra. Em suma, Ele quis para Cristo os tormentos da Paixão porque desejava elevá-Lo à plenitude da glória.

O sofrimento é algo passageiro

E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles. Ao descerem da montanha, Jesus ordenou que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. 10 Eles observaram esta ordem, mas comentavam entre si o que queria dizer “ressuscitar dos mortos”.

Segundo São Mateus, os Apóstolos caíram com a face por terra depois de ouvirem a voz do Pai (cf. Mt 17, 6). Qual não teria sido a potência desta voz? Com que ímpeto ela não penetraria até os ossos? Tudo naquela manifestação era feito para que os Apóstolos tomassem o Mestre como um ser divino e adquirissem consciência de que era imperioso ouvi-Lo, mesmo que, logo a seguir, Ele anunciasse que iria morrer e ressuscitar ao terceiro dia. Mas Nosso Senhor queria, sobretudo, mostrar que as penas do Calvário seriam passageiras.

No episódio da Transfiguração Ele deixa claro que, se eliminar o sofrimento é impossível, também é certo que Deus nunca exige algo acima de nossas forças: “Deus qui ponit pondus, supponit manum — Deus que coloca o peso, põe a mão debaixo”, diz o provérbio. A dor existe tanto na via da santidade quanto na do pecado; na primeira é sempre mais suave e, no fim, todo sofrimento bem suportado dá em triunfo, como recorda Santo Afonso Maria de Ligório: “É preciso sofrer; todos temos que sofrer. Todos, sejam justos ou pecadores, hão de levar a cruz. Quem a leva pacientemente se salva, e quem a leva impacientemente se condena. […] Quem se humilha nas tribulações e se resigna com a vontade de Deus é grão do Paraíso, e quem se ensoberbece e se irrita, abandonando a Deus, é palha para o inferno”. 6 Tão grande é a glória que nos aguarda na eternidade, no júbilo da visão beatífica, que ela justifica todos os padecimentos que possam nos sobrevir. Nas palavras do Apóstolo: “os sofrimentos da presente vida não têm proporção alguma com a glória futura que nos deve ser manifestada” (Rm 8, 18).

Este Evangelho ajuda-nos a focalizar bem o problema do sofrimento. Quando se abater sobre nós um drama ou um malogro que não entendemos, seja isso para nós causa de regozijo, porque indica que levamos na alma o sinal dos predestinados: “Assim como Deus tratou seu amadíssimo Filho, assim também tratará a quem ame e adote como filho”. 7 Dilemas, desilusões, desentendimentos, reveses de saúde, incompreensões familiares, dificuldades financeiras ou desastres são permitidos pela Providência para o nosso bem. Por isso pergunta o mesmo São Paulo, na segunda leitura: “Se Deus é por nós, quem será contra nós? Deus, que não poupou seu próprio Filho, mas O entregou por todos nós, como não nos daria tudo junto com Ele?” (Rm 8, 31b‑32). “Tudo” inclui também a dor. Enchamo-nos, pois, de alegria, porque vamos caminhar ao longo desta Quaresma, passo a passo, rumo à Crucifixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Confiantes de que a Providência nunca nos desampara, abandonemo-nos inteiramente em suas mãos — como Abraão e o próprio Homem-Deus —, para que Ela faça de nós o que Lhe aprouver.

III – Ofereçamos em holocausto aquilo que nos afasta de Deus!

À vista do ensinamento desta Liturgia, não podemos nos esquecer de que o amor manifestado pelo Pai por nós na mactatio — imolação — de seu Filho merece reciprocidade. Deus espera de cada um de nós este sacrifício: desapego daquilo que nos desvia do rumo certo, ou de qualquer apreensão que amarre nosso coração a algo que não seja Ele, e docilidade no tocante à sua vontade. Uma vez que nos chamou à santidade, Ele nos quer por inteiro e que estejamos constantemente com o cutelo elevado como Abraão. Se Abraão esteve disposto a entregar Isaac, como não ­estaremos nós prontos para oferecer aquilo que constitui um obstáculo para a salvação e para nosso relacionamento perfeito com o Senhor? De quanto proveito seria firmarmos um propósito ardoroso de pôr sobre a lenha cada um de nossos caprichos, sobre eles descer a faca e, em seguida, atear-lhes fogo, imolando-os em holocausto a Deus! Desta maneira, como Abraão, nos tornaríamos livres de qualquer apreço desordenado às criaturas.

Jesus carregando a Cruz – Igreja da condenação e da imposição da Cruz, Jerusalém

É comum ouvirmos elogios à fé do santo patriarca, que realmente é digna de todo louvor; mas talvez mais bela ainda seja sua obediência, refletida na do filho Isaac. “A obediência” — afirma Santo Inácio de Loyola — “é um holocausto, no qual o homem inteiro, sem dividir nada de si, se oferece no fogo da caridade a seu Criador e Senhor […]; é uma resignação inteira de si mesmo, pela qual se despoja todo de si, para ser possuído e governado pela Divina Providência”.8 A obediência praticada com tal radicalidade obtém-nos a realização das promessas, porque Deus assegura a Abraão: “Juro por Mim mesmo — oráculo do Senhor —, uma vez que agiste deste modo e não Me recusaste teu filho único, Eu te abençoarei e tornarei tão numerosa tua descendência como as estrelas do céu e como as areias da praia do mar. Teus descendentes conquistarão as cidades dos inimigos. Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da Terra, porque Me obedeceste” (Gn 22, 16‑18). Que consolo seria podermos ouvir a voz de Deus dizendo-nos: “Uma vez que recusaste todos os teus apegos, os queimaste e puseste num altar em sacrifício, Eu te abençoarei, porque tu Me obedeceste”. A obediência é das virtudes que mais agradam a Deus; não aquela que se baseia em exterioridades, mas, sim, a que nasce no fundo do coração, como foi a de Abraão: esta é a obediência autêntica.

Mais uma vez, na segunda leitura, São Paulo nos encoraja a assumirmos essa postura, por termos um intercessor no Céu: “Jesus Cristo, que morreu, mais ainda, que ressuscitou e está à direita de Deus” (Rm 8, 34). Abraão não contava com Nosso Senhor junto ao Pai para pedir por ele, nem sequer Nossa Senhora. Quanto a nós, numa situação muitíssimo superior à do patriarca, temos a intercessão de um Advogado absoluto e de uma Medianeira de impetração onipotente, o que é próprio a nos encher de confiança. Não nos esqueçamos, todavia, que “noblesse oblige — a nobreza obriga”. Dotados de tantos privilégios, devemos corresponder mais do que ele.

No Evangelho, a voz do Pai nos exorta: “Escutai o que Ele diz!”. Lembremo-nos, então, do que Nosso Senhor ensinou: “Se alguém quer vir após Mim, renegue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-Me” (Lc 9, 23). Esta cruz não é pesada, mas, pelo contrário, alivia os pesos de nossa consciência. Ela significa obedecer à vontade de Deus. O 2º Domingo da Quaresma nos estimula a termos diante dos olhos aquilo que alimenta a nossa fé, aumenta a nossa capacidade de sofrer e nos proporciona alegria em meio a todos os tormentos. 

 

Notas

1Para outros comentários a respeito deste tema, ver: CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Como será a felicidade eterna? In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.74 (Fev., 2008); p.10-17; Comentários ao Evangelho do II Domingo da Quaresma – Anos A e C, respectivamente nos Volumes I e V da coleção O inédito sobre os Evangelhos; A Transfiguração do Senhor e nossa santificação. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.8 (Ago., 2002); p.5-10; Comentários ao Evangelho da Festa da Transfiguração do Senhor – Anos A, B e C, no Volume VII, também da coleção O inédito sobre os Evangelhos.
2Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.25, a.3, ad 2.

{NF}3{NF} Cf. Idem, III, q.45, a.2; a.1, ad 3; q.28, a.2, ad 3.

{NF}4{NF} BOSSUET, Jacques-Bénigne. Ier Sermon pour le II Dimanche de Carême. In: Œuvres choisies. Versailles: Lebel, 1822, v.VI, p.283.

5SÃO CIRILO DE ALEXADRIA. ¿Por qué Cristo es uno? 2.ed. Madrid: Ciudad Nueva, 1998, p.135.
6SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. Práctica del amor a Jesucristo. In: Obras Ascéticas. Madrid: BAC, 1952, t.I, p.365.
7Idem, ibidem.
8SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Carta 83. A los Padres y Hermanos de Portugal. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1952, p.838.
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Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, é fundador dos Arautos do Evangelho.

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