Os servos fiéis passaram todo o período de ausência do senhor servindo-o com seriedade e suspirando pelo seu retorno. Ao ouvir que ele chega e os chama, vão céleres ao seu encontro. O servo preguiçoso, pelo contrário, acusa-o de injusto. Sua atitude erige-se assim, em paradigma do comportamento dos pecadores que procuram justificar suas faltas, atribuindo a Deus a causa das mesmas.

 

Evangelho do XXXIII Domingo do Tempo Comum

“O  Reino dos Céus será também como um homem que, tendo de viajar, reuniu seus servos e lhes confiou seus bens. A um deu cinco talentos; a outro, dois; e a outro, um, segundo a capacidade de cada um. Depois partiu. Logo em seguida, o que recebeu cinco talentos negociou com eles; fê-los produzir, e ganhou outros cinco. Do mesmo modo, o que recebeu dois, ganhou outros dois. Mas, o que recebeu apenas um, foi cavar a terra e escondeu o dinheiro de seu senhor. Muito tempo depois, o senhor daqueles servos voltou e pediu-lhes contas. O que recebeu cinco talentos aproximou-se e apresentou outros cinco: ‘Senhor — disse-lhe —, confiaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco que ganhei’. Disse-lhe seu senhor: ‘Muito bem, servo bom e fiel; já que foste fiel no pouco, eu te confiarei muito. Vem regozijar-te com teu senhor’. O que recebeu dois talentos, adiantou-se também e disse: ‘Senhor, confiaste-me dois talentos; eis aqui os dois outros que lucrei’. Disse-lhe seu senhor: ‘Muito bem, servo bom e fiel; já que foste fiel no pouco, eu te confiarei muito. Vem regozijar-te com teu senhor’. Veio, por fim, o que recebeu só um talento: ‘Senhor — disse-lhe —, sabia que és um homem duro, que colhes onde não semeaste e recolhes onde não espalhaste. Por isso, tive medo e fui esconder teu talento na terra. Eis aqui, toma o que te pertence’. Respondeu-lhe seu senhor: ‘Servo mau e preguiçoso! Sabias que colho onde não semeei e recolho onde não espalhei. Devias, pois, levar meu dinheiro ao banco e, à minha volta, eu receberia com juros o que é meu’. Tirai-lhe este talento e dai-o ao que tem dez. Dar-se-á ao que tem e terá em abundância. Mas ao que não tem, tirar-se-á mesmo aquilo que julga ter. E a esse servo inútil, jogai-o nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 25, 14-30).

I – Seriedade de todos os nossos atos

Na parábola dos talentos — assim como na das virgens prudentes, que a antecede, formando com ela um conjunto — Jesus nos ensina o caminho da felicidade eterna. Ambas têm o seu início em uma analogia: “O reino de Deus é semelhante a…”. De fato, parábola, na língua grega, significa: comparação.

Precedendo estas duas passagens do Evangelho, o capítulo anterior de São Mateus nos traz a descrição do fim do mundo, saída dos lábios do próprio Salvador. A conclusão também se faz através de uma parábola, a do “servo mau”, demitido e lançado no lugar onde “haverá choro e ranger de dentes”.

Novo prisma para a parábola dos talentos

Na passagem do Evangelho deste domingo imediatamente anterior ao de Cristo Rei, último do ano litúrgico, os exegetas costumam salientar as contas que, no fim da vida, cada um de nós deverá prestar a propósito dos “talentos” recebidos de Deus.

Os ensinamentos de Jesus, porém, são de uma riqueza inesgotável, e podem ser contemplados sob uma infinitude de prismas, sendo um deles — e muito importante — a seriedade com que todo homem deve procurar cumprir a tarefa ou exercer a função da qual foi incumbido. Sobretudo, se elas são encomendadas, não por um senhor terreno, mas pelo próprio Deus.

Seriedade no ver, julgar e agir

A rapidez frenética da modernidade torna difícil a reflexão sobre os acontecimentos cotidianos. Daí o fato de o homem contemporâneo tender à superficialidade de pensamento e não analisar em profundidade as conseqüências, boas ou más, de seus próprios atos.

Ora, tudo nesta vida é sério, pois somos criaturas de Deus e “é nEle que temos a vida, o movimento e o ser” (At 17, 28). Assim, o mais trivial dos nossos atos tem relação com realidades altíssimas, e pode nos acarretar graves conseqüências ou colocar-nos diante de onerosas responsabilidades, se não for devidamente executado.

Por isso, essa seriedade no exercício de uma função exige de nós, em primeiro lugar, uma inteira objetividade. É preciso ver a realidade como ela é, sem véus nem preconceitos, e sem permitir que seja distorcida por ansiedades ou frenesis. Dessa coerência no ver e no julgar, emanará a seriedade no agir. O que se tem a fazer deve ser começado logo, executado por inteiro, sem perda de tempo e sem interrupções desnecessárias.

Somos árvores cujos frutos são pobres, pecos e, freqüentemente, podres

Não esqueçamos, entretanto, que, sem o auxílio da graça, a natureza humana é incapaz de praticar estavelmente a própria Lei Natural, e até de fazer algo meritório para a salvação eterna.1 Por nossa natureza decaída, somos árvores cujos frutos são pobres, pecos e, freqüentemente, podres. Só quando a seiva da graça circula com força no caule e nos galhos dessa árvore, alcançando até mesmo as folhagens mais distantes da raiz, produzimos frutos abundantes e bons.

“A parábola dos talentos” – Litografia de Caspar Luiken publicada em “Historiæ celebriores Veteris Testamenti iconibus representatæ” (1712)

II – O senhor distribui seus bens e parte

“O Reino dos Céus será também como um homem que, tendo de viajar, reuniu seus servos e lhes confiou seus bens. A um deu cinco talentos; a outro, dois; e a outro, um, segundo a capacidade de cada um. Depois partiu”.

Os três servos da parábola nada possuíam e, ao partir de viagem, seu senhor põe-lhes nas mãos todos os bens que lhe pertencem: oito talentos no total. Tratava-se de uma fortuna considerável, pois o talento não era propriamente uma ­moeda, mas uma medida ideal de valor equivalente a um lingote de prata de, mais ou menos, 30 quilos. O conjunto desse tesouro comportava, portanto, cerca de 240 quilos do precioso metal.

Tudo o que temos vem de Deus

Sobre este aspecto da parábola cabe já uma aplicação para nossa vida espiritual.

Cada um de nós é um servo de Deus que, de si mesmo, nada tem. Na ordem da natureza, recebemos do Criador o ser que Ele ideou para nós desde toda a eternidade, munido de determinados atributos e dons. Junto com a existência, Ele nos deu também todos os bens necessários, tanto materiais quanto espirituais.

De nossos pais recebemos a geração humana, mas não a alma, a qual nos é infundida pelo próprio Deus e elevada à vida sobrenatural pelo Batismo. A partir desse momento, o rico legado de Cristo para sua Igreja ­fica direta e imerecidamente à nossa inteira disposição: sua doutrina, os sacramentos, as graças, os benefícios decorrentes dos seus méritos, etc.

Os dons são distribuídos de forma desigual

Cabe também salientar que, ao distribuir os talentos entre os servos, o senhor da parábola o faz de forma desigual: para um dá cinco; para outro, dois; para o terceiro, um. Sendo o dono, ele pode repartir sua própria fortuna do modo que achar melhor, e, neste caso, distribuiu “de acordo com a capacidade de cada um”.

Perante essa diferença, os três servos agem bem. Os dois últimos não reclamam pelo fato de ter sido dado mais ao primeiro; os que têm menos não ficam com inveja do que recebeu mais, e este não despreza os outros dois. Sabem claramente que tudo é do senhor. São meros administradores, e cada qual deverá prestar contas na proporção do valor que lhe foi confiado. Não há, portanto, motivo para inveja, queixa ou, menos ainda, revolta.

Assim devemos fazer também nós que somos servos do Senhor Nosso Deus. Ao receber dEle dons, não nos cabe perguntar se outros receberam menos ou mais, mas aplicar-nos em retribuir-Lhe da forma mais completa, segundo as nossas próprias aptidões, estando sempre prontos a prestar contas desses talentos, e perguntando-nos freqüentemente: “O que faço com os benefícios que de Deus recebi?”.

O talento era uma medida ideal de valor equivalente a um lingote de prata de, mais ou menos, 30 quilos.

Deus outorga os dons em função de sua própria glória

Deus, ao distribuir seus dons entre nós, seus servos, não se atém a critérios humanos, mas o faz segundo seu beneplácito, visando sua própria glória.

Os dons naturais ou espirituais que Ele nos outorga não vêm pautados pelos nossos desejos, aptidões ou méritos. Pelo contrário, Deus nos dota de qualidades em função da glória que para nós reservou no Céu. Assim, nossa inteligência, vontade e sensibilidade, nossa mentalidade e nosso caráter nos são dados com vistas ao trono que devemos ocupar na eternidade. Nossa natureza e nosso espírito são por Ele preparados para receber os dons sobrenaturais com que quer nos ornar, e todas as graças e benefícios com os quais Ele nos enche ao longo da vida estão orientados nesse mesmo sentido.

Deus, ao fazer-nos filhos adotivos seus, nos chama a sermos manifestações dEle próprio, assim como a participarmos de sua glória. Por isso, diz São Paulo aos Coríntios: “A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum. A um é dada pelo Espírito uma palavra de sabedoria; a outro, uma palavra de ciência, por esse mesmo Espírito, a outro, a fé, pelo mesmo Espírito; a outro, a graça de curar as doenças, no mesmo Espírito; a outro, o dom de milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, a variedade de línguas; a outro, por fim, a interpretação das línguas. Mas um e o mesmo Espírito distribui todos esses dons, repartindo a cada um como lhe apraz” (I Cor 12, 7-11).

Somos membros de um só corpo

Logo a seguir, o Apóstolo acrescenta: “Como o corpo é um todo tendo muitos membros, e todos os membros do corpo, embora muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo” (I Cor 12, 12).

A Igreja, com efeito, forma um corpo no qual cada membro tem uma função diferente. Deus adapta as graças às diversas funções e exige que cada um se aplique, na sua finalidade específica, dentro desse Corpo Místico. Diz São Paulo: “A uns ele constituiu apóstolos; a outros, profetas; a outros, evangelistas, pastores, doutores, para o aperfeiçoamento dos cristãos, para o desempenho da tarefa que visa à construção do corpo de Cristo” (Ef 4, 11-12).

E São Pedro exorta: “Como bons dispensadores das diversas graças de Deus, cada um de vós ponha à disposição dos outros o dom que recebeu” (I Pd 4, 10).

Cada um de nós tem, portanto, uma missão específica. E não podemos querer — por egoísmo, ou por ambicionar uma função que não nos foi atribuída — prejudicar a harmonia desse conjunto criado por Deus em sua infinita Sabedoria.

III – Ausência do senhor

“Logo em seguida, o que recebeu cinco talentos negociou com eles; fê-los produzir, e ganhou outros cinco. Do mesmo modo, o que recebeu dois, ganhou outros dois. Mas, o que recebeu apenas um, foi cavar a terra e escondeu o dinheiro de seu senhor”.

O senhor parte e, “logo em seguida”, o primeiro servo se põe em ação, indicando-nos claramente que nunca devemos perder tempo no serviço do Senhor. A partir do recebimento do uso da razão, devemos entregar-nos à causa de Deus e trabalhar unicamente por ela. E, assim que cada um de nós se dá conta de qual é sua missão específica e quais as responsabilidades a ela inerentes, deve começar a agir sem demora, utilizando todos os dons que a Providência lhe deu para cumpri-la nesta vida.

Amor à autoridade que dá a tarefa

É necessário — como anteriormente vimos — que, ao assumirmos uma função ou ao sermos incumbidos de qualquer tarefa, desempenhemo-nos com senso de responsabilidade, com seriedade e diligência. Mas não só.

Por cima do objetivo concreto do nosso trabalho, considerado em si mesmo, devemos amar a legítima autoridade que nos deu o encargo, sobretudo quando se trata de um superior religioso. Neste caso, a nossa responsabilidade deixa de ser meramente material para elevar-se a um nível mais alto, dentro do qual o amor ao superior deve ser o motor eficazmente dinâmico na execução da tarefa. O bom andamento do serviço e a própria realização do objetivo proposto estarão em função desse amor.

Afastemos de nós o equívoco de julgar que apenas os monges, os sacerdotes ou as religiosas de um instituto de vida consagrada se encontram nessa situação. Qualquer simples fiel, ao obedecer ao Papa, ao Bispo ou ao pároco, ou a qualquer outro legítimo superior, na família ou na sociedade, deve ser movido primordialmente pelo amor à autoridade, instituída pelo próprio Deus.

Retribuir a Deus por dever de amor e de justiça

Quando quem nos impõe uma obrigação não é uma autoridade terrena, mas o Senhor por excelência, o próprio Deus, o amor com que a executemos toma o caráter de suprema importância.

Por amor e por dever de justiça, a Ele devemos toda obediência. É dEle que provêm nosso ser, inteligência, vontade, sensibilidade e todos os dotes naturais. E, sobretudo, de Nosso Senhor Jesus Cristo nos vem a Redenção, de um preço infinito, e com ela a Graça, dom que nenhum talento humano é capaz de merecer.

O senhor passou muito tempo fora

“Muito tempo depois, o senhor daqueles servos voltou e pediu-lhes contas”.

Nas parábolas do Divino Mestre, nenhum detalhe é casual. As circunstâncias, e até os mínimos matizes da narração, são dispostos pela sua ­absoluta Sabedoria, para o nosso bem. Assim, detenhamo-nos um instante na análise do fato de Jesus ter assinalado que o senhor passou muito tempo fora.

Durante essa prolongada viagem, os servos que mais receberam não foram tomados pela preguiça nem pelo desamor. Pelo contrário, mantiveram plena fidelidade durante a ausência de seu senhor, perseverando de forma ótima e fazendo frutificar, tanto quanto lhes era possível, os talentos que ele lhes entregara.

Quais as conseqüências deste ensinamento?

Imaginemos que cada um de nós estivesse chamado a viver durante apenas seis meses com inteiro uso da razão. Em vista dessa brevidade, faríamos todo o possível para apresentarmo-nos ao Tribunal Divino com o máximo de frutos, provenientes dos dons recebidos. Planejaríamos cuidadosamente a recepção dos sacramentos, tomaríamos todas as medidas cabíveis para nos afastar das ocasiões de pecado, procuraríamos crescer em zelo e piedade durante esse curto período de progresso rumo à eternidade.

Entretanto, a maioria dos homens é chamada a viver nesta terra um tempo relativamente longo, ou que lhes parece longo. E por isso, o fervor inicial com que o homem empreende a via do Reino do Céu tende a não ser duradouro.

Recebemos uma graça e o entusiasmo nos pervade, empreendemos uma obra com toda a energia para coroá-la, assumimos uma função fazendo os mais belos propósitos… mas esse primeiro impulso, muitas vezes, não perdura. Chega o momento em que o fervor inicial começa a retirar-se. A ausência do senhor, por assim dizer, se torna consciente no dia-a-dia; e começamos a nos dar conta de quão distante se encontra aquele que partiu.

A essa altura dos acontecimentos, desaparece a força que o senhor irradia com sua mera presença. No cumprimento das obrigações que ele nos deixou, já nem sequer nos estimula a consideração de um retorno dele de forma repentina e imediata. Essa sensação de demora nos coloca em grave risco de esquecê-lo.

Assim acontece com quem abraça a vida religiosa. No início, sente um entusiasmo capaz de derrubar todos os obstáculos e vencer qualquer dificuldade; esse é o “fervor de noviço”, assim chamado por ser característico de quem acaba de entrar nas vias da perfeição. Algum tempo depois — mais longo para uns, menos longo para outros —, afasta-se lentamente a visão primaveril que encantou o religioso no início de sua vocação, e aquele entusiasmo primeiro começa a diminuir. Surgem então as dificuldades. Imerso no labor cotidiano, pesa-lhe a monotonia do dia-a-dia. Se ele não lutar contra essa provação, acabará por esquecer-se da glória de Deus, dos interesses da Igreja, à qual entregou sua vida, e do benefício da própria alma.

Mas esse fenômeno não se dá só com as almas consagradas. O mesmo, quantas vezes, se passa também com quem acaba de receber a Primeira Comunhão, ou a Crisma, ou conclui algum período de formação religiosa! Nessas ocasiões, não poucos podem se sentir pervadidos de um fervor semelhante ao do noviço. Para estes, a perspectiva de uma vida longa bem pode vir a ser grave obstáculo para o fervor inicial continuar aceso!

Cerimônia de batismo – Igreja de Santa Cecília, São Paulo

IV – A recompensa e o castigo

“O que recebeu cinco talentos, aproximou-se e apresentou outros cinco: ‘Senhor — disse-lhe — confiaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco que ganhei’. Disse-lhe seu senhor: ‘Muito bem, servo bom e fiel; já que foste fiel no pouco, eu te confiarei muito. Vem regozijar-te com teu senhor’. O que recebeu dois talentos, adiantou-se também e disse: ‘Senhor, confiaste-me dois talentos; eis aqui os dois outros que lucrei’. Disse-lhe seu senhor: ‘Muito bem, servo bom e fiel; já que foste fiel no pouco, eu te confiarei muito. Vem regozijar-te com teu senhor’”.

Pela forma com que os dois servos fiéis se aproximam, podemos discernir uma espécie de sofreguidão, de santa ansiedade, da parte deles, pela chegada do seu senhor. Nota-se que tinham passado todo o tempo de sua ausência suspirando pelo seu retorno. Ao ouvirem que ele os chama, vão céleres ao seu encontro, porque percebem ter chegado o fim das penas, trabalhos e esforços. Acorrem logo e sem nenhum receio. O que temeriam eles de um senhor que sempre amaram e pelo qual sempre trabalharam?

Esta é a situação dos homens que, durante a vida, atuaram com seriedade e diligência, utilizando todo o seu tempo no serviço do Senhor. Uma vez que cumpriram eximiamente o seu dever e souberam avaliar, aprimorar e agradecer os dons recebidos de Deus e deles se utilizar, não terão dificuldade alguma em deixar esta vida e passar para a eternidade.

A morte os encontrará alegres e desejosos de prestar contas Àquele que tudo lhes deu. Perante a perspectiva do Juízo, não sentirão temor, mas sim uma santa avidez de ir gozar eternamente da Presença de seu Senhor.

Nós, que agora consideramos esta parábola, não poderíamos deter-nos para um breve exame de consciência?

Quanto nos esforçamos por fazer render os dons que Deus nos deu para a glória dEle? Aplicamo-nos, como devemos, muito mais no serviço dEle do que em satisfazer o nosso egoísmo? Em que medida nossas retribuições, nossos louvores, nosso amor a Deus correspondem a tudo aquilo que Ele fez por nós?

Necessidade de restituir os talentos recebidos

Consideremos, a seguir, o belo gesto dos servos, reconhecendo que tudo pertence ao senhor e não se apropriando de nada: “Senhor, confiaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco que ganhei. […] Senhor, confiaste-me dois talentos; eis aqui os dois outros que lucrei”.

Ao longo da nossa vida, Deus não deixa de nos conceder “talentos”. No Batismo, recebemos o dom por excelência que é a graça santificante, participação criada na vida incriada de Deus. A ela, por pura liberalidade divina, se acrescentam graças atuais ordinárias, operantes e cooperantes, e também graças atuais extraordinárias, que a Providência concede em circunstâncias especiais.

Perante tal profusão de “talentos”, devemos reconhecer, com gratidão, que todos esses dons pertencem a Deus. E quando deles “tiramos lucro” ao praticarmos uma boa obra, devemos saber ver, com humildade, quanto o mérito desse ato provém de Deus. Como os servos fiéis, precisamos retribuir a Deus tanto pelos “talentos” recebidos, como por aqueles lucrados pelos nossos atos de virtude.

A recompensa dos servos fiéis

Os servos fiéis da parábola dobraram a soma recebida das mãos de seu senhor, mostrando como o trabalho feito com diligência, com amor, com responsabilidade, acaba sendo coroado pelo sucesso.

“Muito bem, servo bom e fiel; já que foste fiel no pouco, eu te confiarei muito. Vem regozijar-te com teu senhor”. A seriedade com que ambos se comportaram merece de seu senhor idêntico e belíssimo elogio, o qual evoca o que receberão do próprio Deus todos quantos procederam bem durante sua existência terrena.

A resposta do senhor — “eu te confiarei muito” — lembra também outra verdade importante: quem corresponde às primeiras graças, é geralmente beneficiado por outras ainda maiores e por uma renovada força para ser fiel a elas. Toda graça bem correspondida abre as portas para Deus outorgar muitas outras; e quem, nesta terra, deixa de corresponder a uma graça, corre o terrível risco de fechar as portas para as vindouras. Talvez, até, para aquelas que devem conduzi-lo à Bem-Aventurança eterna…

É importante ressaltar, por fim, que o prêmio é infinitamente superior ao esforço que os servos fizeram: “Vem regozijar-te com teu Senhor”. Para um pobre mortal que sai desta vida, o entrar no Céu, o ver Deus face a face, o possuí-Lo, amá-Lo e gozar da sua essencial felicidade é algo inimaginável e muito acima de qualquer merecimento!

O servo que esconde o talento

“Veio, por fim, o que recebeu só um talento: ‘Senhor — disse-lhe —, sabia que és um homem duro, que colhes onde não semeaste e recolhes onde não espalhaste. Por isso, tive medo e fui esconder teu talento na terra. Eis aqui, toma o que te pertence’”.

O comportamento deste “servo mau e preguiçoso” é chocante e digno de toda reprovação, sobretudo se comparado com o dos servos “bons e fiéis”. Em lugar de exercer sua função de forma séria e responsável, ele esconde o talento, guiado por um medo pecaminoso que nada tem a ver com o timor reverentialis (temor reverencial) das almas virtuosas.

Durante a ausência do senhor, foge do cumprimento de sua obrigação e, ao ser chamado a prestar contas, revolta-se contra ele. Para justificar sua falta, ultraja aquele a quem deveria servir, acusando-o de ser injusto: “Sabia que és um homem duro, que colhes onde não semeaste e recolhes onde não espalhaste”. Sua atitude erige-se, assim, em paradigma do comportamento dos pecadores que procuram justificar suas faltas revoltando-se contra Deus e contra os outros. Nunca reconhecem sua culpa; tudo lhes serve de escusa para a sua má conduta.

Sofismarão que é muito difícil salvar-se, porque poucas são as pessoas que alcançam o Céu; ou afirmarão: “Minhas paixões são vivas demais…”; ou: “O mundo está tão corrompido…” De nada servirá aconselhá-los a fazer um maior esforço para domar suas paixões, se elas forem fortes demais; nem recomendar-lhes a fuga das ocasiões que os põem em grave risco. Pois esses pecadores não procuram corrigir-se, mas sim, como já foi dito, sempre buscam razões para justificar suas más obras.

A resposta do senhor

“Respondeu-lhe seu senhor: ‘Servo mau e preguiçoso! Sabias que colho onde não semeei e recolho onde não espalhei. Devias, pois, levar meu dinheiro ao banco e, à minha volta, eu receberia com juros o que é meu’”.

O senhor não se preocupa em refutar as afirmações do servo infiel, porque a ofensa que ele lhe faz é tão sem fundamento que não merece resposta. Pelo contrário, vai diretamente ao ponto essencial do assunto, devolvendo-lhe a acusação: “Servo mau e preguiçoso! Sabias que colho onde não semeei e recolho onde não espalhei. Devias, pois, levar meu dinheiro ao banco e, à minha volta, eu receberia com juros o que é meu”.

O comportamento deste “servo mau e preguiçoso” é chocante e digno de toda reprovação

O castigo

“Tirai-lhe este talento e dai-o ao que tem dez. Dar-se-á ao que tem e terá em abundância. Mas ao que não tem, ­tirar-se-á mesmo aquilo que julga ter. E a esse servo inútil, jogai-o nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes”.

A condenação do “servo mau e preguiçoso”, contida nestes versículos, mostra-nos quão terrível será o suplício dos pecadores no Juízo Final.

Nesse dia, seus falsos raciocínios serão desmascarados diante de todos, e eles sentirão a mais viva vergonha. Os dons que a eles tinham sido concedidos, ser-lhes-ão arrancados e entregues a outros, provocando-lhes uma inveja e amargura tremendas. Aquilo que durante a vida desprezaram aparecerá ante seus olhos em todo o seu valor, enriquecido por Deus e posto nas mãos de outro que aproveitou melhor as graças recebidas.

A essas lancinantes dores, une-se a humilhação de ver-se condenado e jogado nos terríveis tormentos do Inferno, sobre os quais, por falta de espaço, deixamos para falar em outra ocasião.2

V – Medita nos teus novíssimos

Meditar sobre a parábola dos talentos leva-nos, como vimos, a refletir a respeito da seriedade com que devemos conduzir todas as nossas ações. Salta aos olhos como isto traz para nós benefícios extraordinários.

Mas, nesta parábola, Nosso Senhor nos ensina também a jamais nos apropriarmos de nada. Quer se trate de um dom gratuito, quer se trate de um benefício conquistado pelo próprio esforço, tudo é de Deus; dEle tudo recebemos e a Ele pertence tudo quanto fazemos, porque até as nossas capacidades pessoais e nosso próprio trabalho foram criados para sua glória.

A parábola dos talentos nos convida, e muito também, a voltarmos constantemente os olhos para o nosso fim último, que é Deus, assim como para o dia em que por Ele seremos julgados. “Em tudo o que fizeres, lembra-te dos teus novíssimos e jamais pecarás” (Eclo 7, 40), diz a Sagrada Escritura. Se assim procedermos, teremos abraçado uma via segura para a nossa salvação eterna!

 

 Notas


1 Um interessante aprofundamento sobre este assunto pode ser encontrado no capítulo XV de RODRIGUEZ Y RODRIGUEZ, OP, Fr. Victorino. Estudios de Antropologia Teológica. Madrid: Speiro, 1991, pp. 329-354.
2 Uma viva descrição dos tormentos reservados para Santa Teresa de Jesus no inferno, caso ela tivesse se condenado, podemos encontrá-la no início do capítulo XXXII do Libro de la vida, escrito por ela mesma.
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Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, é fundador dos Arautos do Evangelho.

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