No precioso legado de São Marcelino aos seus discípulos, destacam-se seu sapiencial método de educação e a devoção a Nossa Senhora, fundamento e quintessência da pedagogia marista.

 

São conhecidos os apuros pelos quais passou o jovem camponês João Batista Maria Vianney quando teve de enfrentar os estudos no seminário. O futuro Santo Cura d’Ars, apesar de muito se esforçar, saía-se tão mal nos exames que foi quase um milagre o ter sido aprovado. Sua piedade, porém, superava em muito a rudeza de sua inteligência, e a graça supriu com largueza o que a natureza não lhe concedera. Ordenado sacerdote, atraiu multidões à pequena Ars e seu nome tornou-se famoso em toda a França, tanto por sua sabedoria no trato com as almas quanto por sua ­ciência das coisas de Deus.

Curiosamente, entre os companheiros de seminário do Cura d’Ars esteve um personagem que, naqueles primórdios do século XIX, passou do mesmo modo por sérias dificuldades no aprendizado: São Marcelino Champagnat, fundador da Congregação dos Irmãos Maristas.

Também autêntico filho do campo, de físico robusto e espírito pertinaz, ele ingressou no seminário tão decidido a ser sacerdote quanto a ser santo. Formado desde o berço nos sólidos princípios da Religião, faltavam-lhe os conhecimentos, mas não a fé. Por isso, quando os superiores quiseram despedi-lo, alegando sua incapacidade de concluir com êxito os prolongados estudos eclesiásticos, não hesitou em apelar para sua grande Protetora, a Mãe de Deus. Confiou aos cuidados d’Ela sua vocação, suplicando-Lhe que o ajudasse nas agruras estudantis. E obteve muito mais do que havia pedido. A tal ponto que, no dia de sua canonização, a Igreja, grande Mestra da vida, coroou seus méritos chamando-o de “modelo para os pais e os educadores”.1

“Um menino vigoroso, dotado de alma excelente”

“Eu era um menino vigoroso, dotado de alma excelente” (Sb 8, 19). Nenhuma expressão parece tão adequada para descrever a infância do nosso Santo quanto este elogio que o Sábio faz de si mesmo. Nascido em 20 de maio de 1789, poucas semanas antes de estourar a Revolução Francesa, Marcelino José Bento Champagnat foi o penúltimo de dez irmãos, e veio ao mundo na pequenina aldeia de Le Rosey, situada na região montanhosa do Loire. Criança saudável, de temperamento alegre e expansivo, logo assimilou a devoção a Nossa Senhora que a mãe desde cedo procurou inculcar-lhe.

Certamente por uma proteção especial de Maria, os ventos de irreligião que devastaram a França durante a infância de São Marcelino não penetraram no lar dos Champagnat. E como o menino demonstrasse acentuado interesse por todos os assuntos relacionados à Religião, decidiram antecipar sua Primeira Comunhão para os 11 anos, dois a menos da idade prescrita pela Igreja naquela época. A essas alturas, a vida religiosa começava a voltar ao normal no país e Marcelino pôde ser inscrito no primeiro grupo de neocomungantes de 1800, na Paróquia de Marlhes, à qual pertencia o povoado de Le Rosey.

Primeiros contatos com o mundo da educação

Já no curso preparatório para o momento solene da Eucaristia, São Marcelino começou a observar, com singular tino pedagógico, o mundo da educação. Estava-se em plena aula quando o professor perdeu a paciência com certo aluno indisciplinado e, num acesso de irritação, se pôs a recriminá-lo com palavras ásperas, dando-lhe um humilhante apelido. Os outros meninos acharam graça e, desde aquele dia, troçavam de seu companheiro, repetindo de modo jocoso o apelido.

Para livrar-se das zombarias, a única saída encontrada pelo faltoso foi o isolamento. Isto fez dele, com o tempo, um adolescente taciturno, grosseiro e de trato difícil. “Aí está uma educação falha”, concluía São Marcelino, ao narrar este fato aos Irmãos Maristas, décadas mais tarde. “E a criança, exposta a se tornar, por seu mau caráter, o tormento de seu lar e, quem sabe, o flagelo de seus vizinhos! Tudo isso por causa de uma palavra dita levianamente num momento de nervosismo e de impaciência que não teria sido difícil dominar”.2

Na escola infantil da aldeia, teve ele outra experiência pouco feliz. Além de lecionar num espaço bastante precário, o professor costumava resolver os problemas disciplinares à base de castigos corporais, segundo a praxe da época. No primeiro dia de aula, São Marcelino viu-o aplicar uma dessas punições, tomando uma atitude brusca que mais merecia o nome de manifestação de cólera que o de correção. Sentiu tal aversão àquela falta de retidão e de justiça, que decidiu nunca mais voltar à escola. Contava então com pouco menos de 12 anos, e estava determinado a passar a vida bem longe da escola e dos livros. Até o dia em que conheceu a ­vontade de Deus a seu respeito…

O chamado ao sacerdócio

Havia pouco que a Concordata assinada pelo Papa Pio VII e por Napoleão restabelecera na França a liberdade religiosa. O Cardeal ­Fesch, tio de Bonaparte, governava a Diocese de Lyon, à qual a Paróquia de Marlhes fora anexada e, diante das numerosas lacunas deixadas pela Revolução nas fileiras eclesiásticas, envidava esforços para conquistar novas vocações. Reabriu os antigos seminários, inaugurou outros e pedia aos párocos que indicassem candidatos entre os seus fiéis.

Assim sendo, em fins de 1803, quando nosso Santo tinha 14 anos, chegou à aldeia de Le Rosey um sacerdote enviado pelo vigário-geral da Diocese, com a incumbência de recrutar jovens desejosos de “estudar latim”, na expressão comum que se utilizava para dizer “estudar para ser padre”. Por recomendação do pároco, o visitador dirigiu-se diretamente à casa dos Champagnat, a fim de verificar se algum dos rapazes da família aspirava ao sacerdócio. Os dois filhos mais velhos negaram, mas Marcelino nada conseguiu responder. O padre resolveu então chamá-lo à parte e, após um breve diálogo, constatou nele o perfil de um autêntico sacerdote. E disse-lhe de modo paternal e muito categórico: “Meu rapaz, você precisa estudar latim e ser padre; Deus o quer”.3

Até pouco antes dessa visita, o jovem jamais cogitara em abraçar o estado sacerdotal. Tinha pensado em seguir a profissão dos pais, lavradores e proprietários de um moinho, e depois decidira arquitetar seu futuro como comerciante, pois possuía habilidade para as finanças. Contudo, as palavras daquele ministro de Deus foram suficientes para ­desfazer por completo tais planos humanos. Atendeu com prontidão ao chamado divino, e desde esse dia sua vida adquiriu nova perspectiva, bem diferente dos estreitos limites da economia, e bem mais adequada, aliás, à nobreza de sua alma e à robustez de sua fé.

Um grupo de elite no seminário

Depois de vários meses tentando aprender algumas noções de latim, o jovem Marcelino ingressou, em 1805, no Seminário Menor de Verrières. Enfrentou momentos difíceis, por causa de sua inaptidão inicial para os estudos, mas, sob o amparo de Nossa Senhora e à custa de muito empenho, conseguiu vencê-los e chegou a surpreender seus professores quando ultrapassou os outros alunos, conseguindo concluir num ano dois períodos letivos.

Em 1813, já no Seminário Maior de Lyon, promoveu a formação de um grupo de fervorosos alunos — entre eles, o futuro Cura d’Ars —, cujo ideal era restaurar a Fé no mundo por meio da devoção a Maria. Juntos, discutiam os melhores meios de apostolado para realizar esse nobre objetivo e salvar o maior número possível de almas, dentro de dois campos de ação nos quais almejavam trabalhar: as missões e a evangelização da juventude.

Lançaram-se assim os alicerces da Sociedade de Maria ou Congregação dos Padres Maristas, obra que seria mais tarde consolidada e fundada pelo Venerável Padre Jean-Claude-Marie Coli. É este sacerdote quem atesta, em suas memórias, o fato de São Marcelino, “impressionado pelas dificuldades enfrentadas para se instruir”,4 ter proposto durante uma das reuniões desse grupo de elite a criação de outro instituto — não de sacerdotes, mas de irmãos docentes —, destinado à educação das crianças e dos jovens, unindo num mesmo método o ensino das verdades da Fé e o das ciências primárias.

A ideia foi aprovada, ficando a cargo de São Marcelino sua realização. Logo após receber a ordenação sacerdotal, em 22 de julho de 1816, ele encontrou as circunstâncias propícias para concretizar o projeto.

Os frutos da ação de São Marcelino são prova incontestável da eficácia do amor de Maria – São Marcelino Champagnat, Limache (Chile)

Nascem os Irmãozinhos de Maria

Designado como coadjutor da populosa Paróquia de La Valla-en-Gier, o jovem padre conheceu de perto a triste realidade de desordem moral e afastamento das práticas piedosas na qual vivia grande parte daquele povo. A ignorância religiosa — uma das mais nefastas sequelas da Revolução de 1789 — era quase generalizada ali, e não havia no local um professor sequer para alfabetizar as crianças e transmitir-lhes os conhecimentos elementares. Nessas condições, seu plano da nova fundação tornou-se quase uma exigência do apostolado.

Antes de tomar qualquer medida concreta, teve o cuidado de pôr o empreendimento nas mãos de Nossa Senhora, tomando-A como Mãe, Padroeira, Modelo e Primeira Superiora do futuro Instituto. Decidiu também que os religiosos seriam chamados Irmãozinhos de Maria, certo de que bastaria o nome da Virgem para atrair muitos candidatos.

Em pouco tempo se apresentaram os primeiros aspirantes: dois rapazes da paróquia, dotados de bom caráter, frequentadores dos Sacramentos e desejosos de abraçar a vida religiosa. Entusiasmados pelo ideal proposto, logo começaram a viver em comunidade, numa modesta casa próxima à igreja paroquial. Assim, em janeiro de 1817, menos de seis meses após a chegada do padre Champagnat a La Valla, iniciava-se a história dos Irmãozinhos de Maria — também conhecidos como Irmãos Maristas —, os quais, em meados do século XX, chegariam a ser mais de oito mil, com 700 colégios espalhados por todo o mundo. O Santo fundador tinha então somente 28 anos de idade.

A partir daí, a vida de São Marcelino seguiu o caminho trilhado por todos os fundadores, os quais compram com o próprio sofrimento a fidelidade de seus seguidores e a glória de sua obra. Até sua morte, ocorrida aos 51 anos, reveses de toda ordem deram à sua existência a nota distintiva dos homens agradáveis a Deus: a de serem provados “pelo cadinho da humilhação” (Eclo 2, 5).

Foi caluniado pelos inimigos e contrariado por alguns de seus próprios discípulos; faltaram-lhes os meios financeiros e, num determinado período, até mesmo as vocações. As tribulações terminaram por consumir sua saúde, abreviando-lhe os dias. Poucos minutos antes de sua morte, porém, seu rosto recobrou a cor e, olhando fixamente para o alto, disse com um sorriso: “Estou sorrindo porque vejo Nossa Senhora. Ela está aí e vem buscar-me”.5

E os frutos de sua ação, que se multiplicaram depois de sua partida deste mundo, nos permitem considerá-lo como prova incontestável da eficácia do amor de Maria, a qual faz de seus filhos diletos “a boa terra em que o Divino Lavrador colhe o trintuplo ou mais do que semeou”.6

Alguns aspectos da pedagogia marista

No precioso legado de São Marcelino aos Irmãos Maristas, destaca-se seu sapiencial método pedagógico, uma das mais perfeitas expressões de sua vocação.

O bom exemplo do mestre

Como pressuposto para o êxito da missão do Instituto, julgava ele primordial a compenetração de seus discípulos no sentido de serem verdadeiros educadores, e não meros transmissores de conhecimentos: “Queremos educar as crianças, isto é, instruí-las sobre seus deveres, ensinar-lhes a praticá-los, infundir-lhes o espírito e os sentimentos do Cristianismo, os hábitos religiosos, as virtudes do cristão e do bom cidadão”.7 E fazia uma interessante analogia entre o cultivo do solo e a importância da educação infantil: “Por melhor que seja um terreno, se permanecer inculto não produzirá senão espinhos e abrolhos. Da mesma forma, por melhores que sejam as disposições de uma criança, se lhe faltar a educação crescerá sem virtudes e sua existência será nula para o bem”.8

Considerava como elemento imprescindível para a eficácia dessa missão o respeito mútuo entre aluno e professor e, sobretudo, o bom exemplo do mestre, uma das credenciais para conseguir a obediência dos alunos. “A educação é, portanto, em primeiro lugar, questão de bom exemplo, porque a virtude fortalece a autoridade; porque é da natureza do homem imitar o que vê fazer, e os atos têm mais força para convencer e persuadir do que palavras e instruções. A criança aprende mais pelos olhos do que pelos ouvidos. Vendo os pais ou chefes trabalhando, acostuma-se ao trabalho e aprende um ofício. Assim também, é vendo fazer o bem e recebendo bons exemplos que aprende a praticar a virtude e a viver cristãmente. O Irmão piedoso, observante, caritativo, paciente, dedicado, honesto e fiel a todos os deveres está sempre dando catecismo. Sem notar, pelos bons exemplos vai transmitindo aos alunos a piedade, a obediência, a caridade, o amor ao trabalho e todas as virtudes cristãs”.9

E não deixava passar nenhuma oportunidade de lembrar isso aos religiosos: “Sei também que tem bastantes alunos” — escrevia a um Irmão diretor — “terá, portanto, bastantes cópias de suas virtudes, pois é à sua ­imagem que as crianças se formam e são seus exemplos que vão nortear a conduta deles”.10

A disciplina é o corpo da educação

Outro aspecto ao qual São Marcelino dava primordial importância na arte de ensinar era a disciplina. Insistia em dizer que a ordem é agradável a todos, inclusive às crianças, esclarecendo que a essência da disciplina não é a repressão pela força e pelo medo dos castigos, mas sim a correção dos defeitos e a formação da vontade. “A disciplina representa a metade da educação da criança; faltando essa metade, na maioria dos casos inutiliza-se a outra. De que adianta ao menino saber ler, escrever e até saber o catecismo, se não aprendeu a obedecer, a se comportar, se não adquiriu o hábito de refrear as más inclinações para seguir a voz da consciência? Por que razão os homens de hoje são tão volúveis, sensuais, incapazes de renúncia, incapazes de suportar algo que contrarie a natureza? Porque não foram submetidos à disciplina desde a infância. Desfrutaram demasiada liberdade. Não se lhes ensinou o autodomínio, a abnegação e a luta contra as más inclinações. A disciplina é o corpo da educação; a Religião, a alma”.11

“Tudo a Maria, para Jesus”

Como exímio didata, não lhe faltavam os sentimentos paternais, num perfeito equilíbrio da firmeza com a bondade, que se reflete neste conselho: “Diga aos seus alunos que Deus ama muito aqueles que são bem comportados, porque se parecem com Jesus, o máximo de bem comportado, e que ama também aqueles que não são bem comportados, porque espera que ainda vão chegar lá”.12

É na devoção a Nossa Senhora, entretanto, que se encontram o fundamento e a quintessência da pedagogia marista, como está prescrito na Regra da fundação: “Os Irmãos envidarão todos os esforços para inspirar aos meninos grande devoção à Santíssima Virgem”.13 Tal era o desejo de São Marcelino Champagnat de glorificar a Mãe de Deus que o lema “tudo a Jesus por Maria” não o contentou. Daí a razão de, ao adotá-lo para seu Instituto, tê-lo complementado com um ousado e filial trocadilho, o qual bem poderia resumir sua vida: “Tudo a Maria, para Jesus!”.14

 

 

Notas


1 BEATO JOÃO PAULO II. Homilia na Canonização de Marcelino Champagnat, João Calábria e Agostina Lívia Pietrantoni, de 18/4/1999.
2 SÃO MARCELINO CHAMPAGNAT, apud FURET, Jean-Baptiste. Vida de São Marcelino José Bento Champagnat. São Paulo: Loyola, 1999, p.6.
3 FURET, op. cit., p.10.
4 COLIN, Jean-Claude. Memórias, apud FURET, op. cit., p.28.
5 SÃO MARCELINO CHAMPAGNAT, apud FURET, op. cit., p.317.
6 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Ladainha de invocações a Nossa Senhora. In: Opera Omnia. Reedição de escritos, pronunciamentos e obras. São Paulo: Retornarei, 2011, v.III, p.410.
7 SÃO MARCELINO CHAMPAGNAT, apud FURET, op. cit., p.498.
8 Idem, p.499.
9 Idem, p.500-501.
10 SÃO MARCELINO CHAMPAGNAT. Carta ao Ir. Bartolomeu, 31/1/1830, apud FURET, op. cit., p.262.
11 SÃO MARCELINO CHAMPAGNAT, apud FURET, op. cit., p.490.
12 Idem, p.471-472.
13 SÃO MARCELINO CHAMPAGNAT. Regra de 1837, apud FURET, op. cit., p.319.
14 FURET, op. cit., p.313.
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