Em todas as fases da História os infernos empreenderam terríveis investidas contra a Esposa de Cristo, mas houve também, em cada período, almas especialmente chamadas cuja perseverança e fidelidade serviram de instrumento para a realização da divina promessa.

 

Uma brisa agradável acariciava as árvores, cujas folhas já começavam a cair, e a luz tênue do crepúsculo banhava com delicadeza a imponente mansão em estilo romano que se erguia no centro do jardim. No interior da casa, entretanto, o clima não acompanhava o frescor e a leveza do entardecer. Não era difícil entrever que algo transcorrera diferente do desejado: um homem, andando de um lado para outro com visível impaciência, parecia não saber bem que rumo tomar. Com os lábios semicerrados, pronunciava palavras quase incompreensíveis:

— Qual será a melhor forma?… Como fazer?…

Passava ele a mão pela cabeça, recordando os episódios da manhã. Seu olhar se iluminava pelo ódio que se reacendia com os pensamentos e seus passos inquietos voltavam a se suceder. Ausidiano – este era o nome de nosso personagem – fora enviado da capital do Orbe ao Quersoneso Táurico, a Crimeia de hoje, pelo Imperador Trajano. Para quê?

Havia na região uma pedreira, de onde se extraía mármore. A fim de garantir a mão de obra, para lá tinham sido deportadas inúmeras pessoas inculpadas de um grande crime para os conceitos da época: ser cristão. Era um desses “criminosos” que preocupava Ausidiano naquele fim de tarde. Sim, tal exilado era o Sumo Pontífice, mais tarde conhecido como São Clemente Romano.

São Clemente Romano

Imbuído do espírito de Cristo

A origem deste santo varão é cercada de mistério. Segundo alguns autores era ele de berço ilustre, filho do Senador Faustiniano, parente dos Imperadores Vespasiano, Tito e Domiciano. Para outros, nascera no seio de uma família de escravos, tendo sido posteriormente liberto. Indiferente é a condição de seu nascimento, pois, considerando-o com vistas sobrenaturais, ambas as versões se coadunam: era Pontífice da Santa Igreja, dignidade máxima a que alguém pode ascender, tendo sido antes liberto da escravidão do pecado pela Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Santo Irineu afirma que ele se encontrara com os Apóstolos, e “guardava viva em seus ouvidos a pregação deles e diante dos olhos a sua tradição”.1 Outros cronistas o identificam com quem fora elogiado por São Paulo na Carta aos Filipenses: “Trabalharam comigo no Evangelho, com Clemente e com os demais colaboradores meus, cujos nomes estão inscritos no livro da vida” (4, 3).

Assim, antes de sentar-se no Trono de Pedro, ele se comportava como digno sucessor do Apóstolo das Gentes em seu zelo e dedicação pela causa cristã. De tal modo estava ­imbuído do espírito de Cristo e por Ele se deixara assumir, que sua convicção e exemplo eram um constante convite para seguir o Salvador. Inúmeros ­pagãos abraçavam a Fé e os cristãos se lançavam com generosidade nas vias estreitas da perfeição.

Uma dessas almas foi a nobre Flávia Domitila que, por intercessão dos Santos Nereu e Aquiles, dele recebeu o sagrado véu da virgindade, selando depois com seu sangue esta valorosa entrega.

Se é verdade que a glória de São Clemente cruzou os séculos, muitos detalhes de sua vida, todavia, não se conservaram. O que não nos ­impede de tentar dela formar um esboço, imaginando, a partir do que passou para a História, algumas cenas de sua existência, como a narrada nas linhas iniciais deste artigo.

Sucessor de Pedro na Igreja de Roma

Quem toma contato com a vida deste Santo e sabe que ele foi um dos primeiros sucessores de São Pedro poder-se-ia perguntar: como terá sido eleito? Para responder à questão, quiçá valesse a pena voltar a atenção para a própria figura do Pescador, como o descrevem os Evangelhos.

Enquanto lançava as redes no Lago de Genesaré, tudo se apresentava a Simão com a perspectiva comum dos homens de seu tempo. Inesperadamente o Divino Mestre o chama e faz dele o Príncipe dos Apóstolos, pedra sobre a qual seria erigida a Santa Igreja. Nosso Senhor sobe aos Céus e continua de algum modo presente na terra na pessoa de seu Vigário, que enceta a grande obra de conversão do mundo.

Os anos se passaram e ele via as palavras do Salvador se realizarem: tornara-se pescador de homens (cf. Mt 4, 19) e apascentava as ovelhas do Senhor (cf. Jo 21, 17). Mas, para isso, quantos obstáculos, perseguições, heresias, enfim, quantas adversidades teve que enfrentar com ânimo forte!

Decorrido o tempo, sentia aproximar-se o cumprimento da derradeira profecia de Jesus: “Quando fores velho, estenderás as tuas mãos, e outro te cingirá e te levará para onde não queres” (Jo 21, 18). Avizinhava-se o dia de seu martírio e São Pedro não se preocupava consigo, pois sabia que reencontraria Aquele a quem tanto amava e por quem tanto ansiava. No entanto, o que seria da Igreja? Com sua partida, quem a guardaria do erro, a protegeria nos perigos, a fortaleceria nas dificuldades? Quem a guiaria rumo à perfeição que Deus lhe reservara?

Seus olhos, tomados de preocupação, percorreram um a um dos fiéis e pousaram em Clemente. Contemplando sua alma, Pedro podia fazer suas as palavras de Simeão – “Agora, Senhor, deixai o vosso servo ir em paz” (Lc 2, 29) –, pois encontrara reposta para suas preocupações. O ardente amor a Deus daquele varão incendiaria toda a Igreja, sua prudência e sabedoria a guardariam e, em sua pessoa, Nosso Senhor continuaria a guiá-la. A santidade do escolhido foi o apoio seguro para o holocausto do primeiro Pontífice, a garantia da perenidade da Esposa Mística de Cristo. É o que se pode conjecturar pela narração de Tertuliano,2 que afirma ter sido São Pedro quem, na hora de sua morte, elegeu São Clemente como seu sucessor no Episcopado Romano.

Deus, porém, lhe teria exigido uma prova de amor desinteressado, pois quem assumiu a Cátedra de Pedro, como registra a História dos Papas sem revelar os motivos, foi Lino. Em seu coração não dominava a ambição, o desejo de projeção ou de mando. Pelo contrário, ele pôs em prática o que mais tarde aconselharia: “Quem de vós é generoso, compassivo e cheio de amor? Diga ele: ‘Se por minha causa existe revolta, briga e divisões, eu vou-me embora. Irei para onde quiserdes, e farei o que a multidão ordenar, para que o rebanho de Cristo viva em paz com os presbíteros constituídos’”.3

A Lino sucedeu Anacleto e só com a morte deste, afinal, subiu Clemente ao Sólio Pontifício, por volta do ano 88 da Era Cristã.

Primeiro exercício do Primado Romano

Como bom pastor e pai, ele apascentava o rebanho do Senhor curando e também admoestando, para cumprir o ensinamento das Escrituras: “Quem poupa a vara odeia seu filho; quem o ama, castiga-o na hora precisa” (Pr 13, 24).

Quando por volta do ano 95 lhe chegou a notícia de que os membros da comunidade cristã de Corinto, que já haviam sido objeto das preocupações de São Paulo, seguiam enfrentando-se em constantes conflitos e divisões, ­dirigiu-lhes a famosa carta que “constitui o primeiro exercício do Primado Romano depois da morte de São Pedro”.4

Nas primeiras linhas ele enuncia claramente o motivo da missiva: “Não se anda mais segundo as diretrizes dos seus preceitos, nem se comporta mais de maneira digna de Cristo. Ao contrário, cada um anda segundo as paixões do seu mau coração”.5

Empregando muita delicadeza e tato, a seguir São Clemente une-se aos esforços dos coríntios no caminho da perfeição: “Estamos na mesma arena, e o mesmo combate nos espera. Deixemos, portanto, as preocupações vazias e inúteis, e sigamos a norma gloriosa e veneranda da nossa tradição. Vejamos o que é bom, o que agrada e o que é aceito diante d’Aquele que nos criou. Tenhamos os olhos fixos no Sangue de Cristo, e compreendamos como é precioso ao seu Pai. Derramado pela nossa salvação, trouxe ao mundo a graça do arrependimento”.6

Uma vez apontado o erro, procura elevar-lhes a mente, mostrando a grandeza do chamado que Deus nos fez; dá conselhos e explicações de ordem prática e os exorta à perseverança nas adversidades.

São Pedro e São Clemente – Basílica de São Clemente, Roma; na página anterior, iluminura do Gradual de Santa Maria degli Angeli – British Library

Belíssima descrição da identidade da Igreja

Contudo, a Carta aos Coríntios é, mais do que a solução para um problema concreto, uma ampla e belíssima descrição da identidade da Igreja nascente e de sua missão. Pois, “se em Corinto se verificaram abusos, observa Clemente, o motivo deve ser procurado no enfraquecimento da caridade e de outras virtudes cristãs indispensáveis”.7

Para atingir seu objetivo, o Pontífice “ressalta que a Igreja tem uma estrutura sacramental e não uma estrutura política. O agir de Deus que vem ao nosso encontro na Liturgia precede as nossas decisões e as nossas ideias. A Igreja é sobretudo dom de Deus e não nossa criatura, e por isso esta estrutura sacramental não garante apenas o comum ordenamento, mas também esta precedência do dom de Deus, do qual todos necessitamos”.8

São Clemente mostra também “como formamos um Corpo em Cristo e como neste Corpo deve reinar a unidade e não a desordem”.9 Apresenta-se como um defensor da hierarquia e do cumprimento do dever e “não só admira a disciplina militar, mas a propõe como exemplo a ser seguido no interior da comunidade”.10

Exilado por ordem do imperador

Quem contempla a dedicação e o cuidado dispensados por este Papa à comunidade de Corinto tende a imaginar que a Barca de Pedro singrava, à época, um mar tranquilo, e que o Vigário de Cristo não tinha outra preocupação além do progresso espiritual de suas ovelhas.

Ora, a realidade era bem diversa! Tão logo termina a saudação, na mencionada Carta aos Coríntios, ele recorda os tempos difíceis em que viviam: “Irmãos, pelas desgraças e adversidades imprevistas, que nos aconteceram uma após outra”…11

Com efeito, após a morte do Imperador Nero, no ano 68, veio um tempo de paz, perdurando no reinado de Vespasiano e no de Tito. Sem embargo, ao subir Domiciano ao trono, em 81, nova tempestade se armou, pois o imperador pretendia fazer-se adorar como deus por seus súditos, ao que os cristãos não podiam se submeter… Tal negativa, acrescida de uma questão financeira, fez renascer com vigor o ódio dos pagãos, e o clima de terror, perseguição e morte se restabeleceu. Não obstante “a proibição mais rigorosa do Cristianismo”,12 este continuava a se robustecer.

No ano 98 Trajano assumiu o governo do império, continuando a perseguição de seu predecessor. Diante daqueles que consideravam a perseverança na Religião um crime, São Clemente foi acusado de “sacrilégio, impiedade, desobediência aos editos imperiais e blasfêmia contra os deuses”.13 Se grande era a antipatia nutrida em relação ao comum dos cristãos, esta se potencializou para com quem era considerado a alma e cabeça do Cristianismo.

Ante o tribunal, a condição da liberdade era apenas uma: negar a Fé e sacrificar aos deuses! O Santo Pontífice se recusou. Numerosas foram as tentativas de persuadi-lo, pois sua apostasia traria atrás de si boa parte da Cristandade. Tudo em vão. Ele se mantinha irredutível! Por decreto imperial foi deportado ao Quersoneso Táurico para trabalhar na pedreira. Muitos fiéis o acompanharam voluntariamente no infortúnio.

Quando o mal parecia ter vencido…

Longe de intimidar-se, ele tirou de seu exílio grande proveito para o Cristianismo, pois, à luz dos milagres que realizava, o povo acorria em massa para vê-lo. Pregando ­Jesus Cristo aos bárbaros, ele convertia centenas de pessoas e administrava-lhes o Batismo. “Os ídolos foram derrubados, seus templos demolidos, talados os bosques a eles dedicados e, no período de um ano, erigidas setenta e cinco igrejas em honra do verdadeiro Deus”.14

Este foi o motivo que determinou o envio de Ausidiano para lá, com ordem de reverter a situação por meio de suplícios, e nestas circunstâncias o encontramos na abertura deste artigo, preocupado com o tipo de morte que daria ao Romano Pontífice…

Finalmente excogitou um modo pelo qual, pensava ele, até a memória do Santo Padre seria apagada: lançá-lo-ia em alto-mar com uma âncora presa ao pescoço, para que os cristãos não pudessem conservar suas relíquias e acabassem por esquecê-lo.

O mal parecia vencer… A realidade, porém, era bem outra! Pouco tempo depois de sua morte, os discípulos de Clemente se uniram para pedir a Deus que revelasse o paradeiro do corpo do seu santo pastor. Durante a oração, o mar se retirou e, acompanhando a pé enxuto o movimento das águas, acharam “uma pequena capela de mármore, com uma estrutura admirável, construída por mão de Anjos, onde repousava o corpo do santo mártir, e ao lado a âncora, que fora o instrumento de seu suplício”.15

À esquerda, São Clemente diante de Ausidiano – Basílica de São Clemente, Roma. À direita: encontro do corpo de São Clemente, Iluminura do Menológio de Basílio II – Biblioteca do Vaticano

Realização da divina promessa

“Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão ­contra ela” (Mt 16, 18). Com estas palavras, o Divino Redentor firmava a imortalidade de sua Esposa Mística e a promessa de sua vitória diante das inúmeras lutas, provas e contrariedades que haveria de enfrentar.

Em todas as fases históricas os infernos empreenderam terríveis investidas contra a Igreja, mais ou menos sutis ou violentas, em função das circunstâncias concretas; em cada período, todavia, houve também ­almas especialmente chamadas, cuja perseverança e fidelidade serviram de instrumento para a realização da divina promessa.

O terceiro sucessor de Pedro foi um desses sólidos baluartes que marcam a História da Igreja. Pairando acima das sangrentas perseguições, soube ser fiel transmissor do espírito de Cristo, que haurira com ardente fervor em São Pedro e São Paulo. Corrigiu o erro, ensinou a verdadeira doutrina, estimulou e fortaleceu a virgindade, fez brilhar a ordem e a hierarquia.

São Clemente Romano, em suma, fez a Igreja vencer e crescer de modo admirável durante seu pontificado. “Pessoas detestáveis, cheias de todo tipo de maldade, tão enraivecidas no seu furor” entregaram-no às torturas. Mas “o Altíssimo é o defensor e o escudo daqueles que cultuam, de consciência pura, o seu nome excelso. […] Os que suportaram com confiança, herdaram glória e honra; foram exaltados, e Deus os inscreveu no seu memorial pelos séculos dos séculos”.16 Talvez a humildade não permitisse ao Santo Pontífice compreender o quanto estas palavras se aplicavam a quem as escrevia!

 

Notas


1 SANTO IRINEU DE LYON. Adversus hæreses. L.III, c.3, n.3: PG 7, 849.
2 Cf. TERTULIANO. De præscriptionibus adversus hæreticos, c.XXXII: PL 2, 45.
3 SÃO CLEMENTE ROMANO. Primeira Carta aos Coríntios, n.54. In: PADRES APOSTÓLICOS. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2014, p.40.
4 BENTO XVI. Audiência geral, 7/3/2007.
5 SÃO CLEMENTE ROMANO, op. cit., n.3, p.20.
6 Idem, n.7, p.21-22.
7 BENTO XVI, op. cit.
8 Idem, ibidem.
9 PADRES APOSTÓLICOS, op. cit., p.16.
10 Idem, ibidem.
11 SÃO CLEMENTE ROMANO, op. cit, n.1, p.19.
12 LLORCA, Bernardino. Historia de la Iglesia Católica. Edad Antigua. 7.ed. Madrid: BAC, 1996, v.I, p.187.
13 GUÉRIN, Paul. Les petits bollandistes. Vies des Saints. 7.ed. Paris: Bloud et Barral, 1876, t.XIII, p.565.
14 Idem, p.566.
15 Idem, p.566-567. As relíquias do Santo Pontífice foram transferidas por São Cirilo para Roma, durante o pontificado de São Nicolau I (858-867), e depositadas na basílica romana que leva seu nome.
16 SÃO CLEMENTE ROMANO, op. cit., n.45, p.37.
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