Da união de São Joaquim e Sant’Ana floresceria o Lírio dos lírios, Maria Santíssima, da qual nasceria o Salvador. Para bem cumprirem esta missão, convinha que a Providência os elevasse a um grau de santidade jamais atingido até então.

 

O Verbo Eterno quis precisar de uma Mãe para n’Ela assumir a natureza humana e, recapitulando em Si o universo inteiro (cf. Ef 1, 10), reparar o pecado de nossos primeiros pais.

Nessa perspectiva, o advento de Nossa Senhora não significou apenas um enriquecimento para a obra da criação, mas sua elevação a uma plenitude inimaginável. A natividade da Rainha do Universo deu início a um novo regime de graças para os Anjos e os homens, e permitiu que Deus estabelecesse no plano físico o seu Paraíso.[1] A partir desse momento, Ele pôde “passear” na alma de Maria como fazia de modo prefigurativo no Paraíso Terrestre quando conversava com Adão “à hora da brisa da tarde” (Gn 3, 8).

E para o surgimento, no tempo, desse Paraíso preparado com esmero desde toda a eternidade, o Divino Artífice dispôs de duas almas eleitas: São Joaquim e Sant’Ana. A compreensão das graças e dons singulares com os quais a Providência os galardoou, em virtude de sua extraordinária vocação, requer que recordemos certos pressupostos teológicos fundamentais.

Limpos do pecado original e cumulados de graças

Sant’Ana – Paróquia Thannenkirch, Alsácia (França)

Após a queda de nossos primeiros pais, o Criador estabeleceu um pacto com Abraão e indicou-lhe rituais que santificariam seus descendentes, limpando-os da culpa do pecado original e atenuando suas sequelas. Desse modo formava para Si um povo santo, do qual nasceria o Varão centro e ápice de toda a História, Jesus Cristo.[2]Ora, inseparavelmente unida a Ele na mente divina encontrava-Se Nossa Senhora, obra-prima do Altíssimo e sócia na obra redentora de seu Filho.

O Pai teve um carinho todo especial ao preparar o nascimento de Maria e, sob certo aspecto, cuidou mais diretamente e com mais esmero da vinda d’Ela ao mundo que do nascimento do Menino Jesus. Em primeiro lugar, porque se conformava à nobreza divina assim proceder com uma criatura mais frágil e delicada. Depois, pela simples razão de que o fator mais importante e fundamental para se dar a Encarnação era a existência de Nossa Senhora. Estando Ela na face da terra, a Trindade Santíssima podia como que “Se despreocupar” dos outros detalhes.

Como verdadeiros israelitas, Joaquim e Ana foram a seu tempo limpos do pecado original e viviam em estado de graça. Mas a grandeza da concepção da Mãe do Messias recomendava que eles se elevassem a um grau de santidade e de purificação até então jamais atingido. Por conseguinte, deveriam ser cumulados de dons e virtudes muito particulares.

Ademais, no que dizia respeito à constituição da Menina, convinha que Ana possuísse uma santidade ainda maior que a de seu esposo, pois se tornaria o tabernáculo vivo da Rainha do Universo. Sem embargo, Deus também ornou Joaquim com eminentes virtudes, porquanto elas seriam a principal herança que deixaria à sua Filha. De certa forma, a missão de ambos superava a dos próprios Anjos, uma vez que a nenhum destes Nossa Senhora chamou de “mamãe” ou de “papai”…

Efeitos da proximidade com a Mãe de Deus e seu Filho

Explica o Doutor Angélico que quanto mais próximo alguém se encontra da causa, seja qual for o gênero, tanto mais participa de seu efeito.[3] Aplicando esse princípio a Cristo, Fonte da qual nos vem toda graça e verdade (cf. Jo 1, 17), aqueles que Lhe são mais próximos, mais se beneficiam dos frutos de sua Encarnação, Morte e Ressurreição. Essa proximidade, porém, pode ser considerada sob dois aspectos diversos, mas não necessariamente excludentes: um baseado no vínculo sanguíneo e familiar, outro na complementaridade de missão.

Em Maria ambos os aspectos se verificam de modo ímpar, uma vez que pela Maternidade Divina Ela contribuiu para a formação do Corpo perfeitíssimo de seu Filho e, como Corredentora e Medianeira Universal de todas as graças, Se associou à obra de salvação por Ele operada. Por isso, Aquela que mais plenamente se beneficiou ante previsa merita da Redenção foi Nossa Senhora, isenta de qualquer mancha de pecado e plena de graça desde o primeiro instante de sua concepção.

Algo similar teria ocorrido com São José, conforme o Autor expôs em outra obra.[14] Sem que o Glorioso Patriarca houvesse oferecido qualquer contributo biológico para a concepção de Jesus, sua singular proximidade física, enquanto pai virginal do Homem-Deus e verdadeiro esposo de Maria Santíssima, propiciava igualmente uma participação sui generis nos efeitos da Redenção.

Recapitulados esses princípios fundamentais, a pergunta surge inevitavelmente: o que terá se passado com Sant’Ana e São Joaquim? Os Evangelhos nada dizem a seu respeito, nem sequer mencionam seus nomes.[5] Entretanto, são eles os pais de Nossa Senhora e os avós de Jesus!… Haveria vínculo sanguíneo mais estreito e mais íntimo? Quais foram então os efeitos da graça sobre o santo casal, em vista da concepção de Maria, a Imaculada? Uma passagem do Antigo Testamento pode ajudar a responder essas questões.

O exemplo de Tobias e Sara

As Sagradas Escrituras narram com detalhe os esponsais de Tobias e Sara, sua prima, moça de rara beleza (cf. Tb 7-8). A jovem era vítima de Asmodeu, o demônio da impureza, o qual matara na primeira noite após o casamento sete maridos que dela haviam se aproximado movidos pela paixão e, portanto, distanciados de Deus em seu interior. Muito aflita, Sara pensou no suicídio, mas resistiu à tentação em vista do desgosto que causaria a seu bom pai, Raguel.

Casamento de Tobias e Sara – Museu Schnutgen, Colônia (Alemanha)

A Providência, contudo, preparava uma admirável solução para o caso. Tobias, instruído pelo Arcanjo São Rafael, que o acompanhava em forma humana com o nome de Azarias, venceria a concupiscência da carne, exorcizaria Asmodeu e desposaria Sara com o coração puro.

Com a devida anuência dos pais, celebrou-se de modo solene a festa dos esponsais. Terminada esta, e tendo apenas entrado no aposento nupcial, Tobias disse: “Levanta-te, Sara, e roguemos a Deus, hoje, amanhã e depois de amanhã. Estaremos unidos a Deus durante essas três noites. Depois da terceira noite consumaremos nossa união; porque somos filhos dos santos patriarcas e não nos devemos casar como os pagãos que não conhecem a Deus” (8, 4-5).

Esgotado o prazo, observado por ambos em fervorosa prece, Tobias rezou a Deus antes de consumar o matrimônio: “Vós sabeis, ó Senhor, que não é para satisfazer a minha paixão que recebo a minha prima como esposa, mas unicamente com o desejo de suscitar uma posteridade, pela qual o vosso nome seja eternamente bendito” (8, 9).

Por sua pureza e obediência aos conselhos do Anjo, Tobias exorcizou sua união nupcial e teve uma longa vida em companhia de Sara.

São Joaquim – Museu Arquiepiscopal de Arte Religiosa, Cuzco (Peru)

A castíssima geração de Maria, prelúdio da vingança divina

À luz desse fato, põe-se a questão a respeito de São Joaquim e Sant’Ana. Quando se considera que nos dois convergiu o que havia de mais requintado no povo eleito, tanto no que se refere aos dons naturais quanto aos sobrenaturais, com vistas à sua plena manifestação em Nossa Senhora e no Homem-Deus, parece razoável admitir que também eles, de forma ainda mais perfeita que Tobias e Sara, tenham sido purificados da concupiscência da carne antes da concepção de Maria.[6]

Ademais, tratando-se da Medianeira Universal de todas as graças – mediação que abarca por inteiro a História da criação –, os primeiros a se beneficiarem desta prerrogativa não deveriam ser os seus próprios pais? Essa hipótese se apresenta como o modo mais decoroso e casto de preparar a aurora da Redenção, que despontaria na concepção da Santíssima Virgem.

O Autor crê que a Providência tenha concluído sua obra em ambos concedendo-lhes essa graça, de maneira que na geração de Maria a concupiscência em nada maculasse o ânimo dos esposos.[7] Assim, a castíssima concepção de Nossa Senhora constituiria o prelúdio da vingança sobre a serpente, que Deus prometera no Paraíso (cf. Gn 3, 15).

 

Extraído, com pequenas adaptações, de:
CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio.
Maria Santíssima! O Paraíso de Deus revelado aos homens.
São Paulo: Arautos do Evangelho, 2020, v.II, p.57-73

 

 

Notas

[1] Sobre esse Paraíso afirma São Luís Maria Grignion de Montfort: “A Santíssima Virgem é o verdadeiro Paraíso Terrestre do novo Adão, do qual o antigo Paraíso Terrestre não era senão figura. […] É nesse Paraíso Terrestre que está verdadeiramente a árvore da vida, que produziu Jesus Cristo, fruto de vida; a árvore da ciência do bem e do mal, que deu a luz ao mundo. Há nesse divino lugar árvores plantadas pelas mãos de Deus e regadas por sua unção divina, que produziram e produzem ainda, todos os dias, frutos de sabor divino. Há canteiros esmaltados de belas e diversas flores de virtudes, cujo aroma perfuma os próprios Anjos” (SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge, n.261).
[2] Em sua infinita bondade, o Pai jamais abandonou o homem após a falta de Adão. Pelo contrário, a todo momento e em todas as circunstâncias, Ele sempre oferece à humanidade um remédio salvífico, como ensinam Santo Agostinho (cf. Epistola CII. Ad Deogratias, n.12), São Leão Magno (cf. In nativitate Domini. Sermo IV, n.1: SC 22, 106-110) e São Tomás de Aquino (cf. Scriptum super Sententiis. L.IV, d.1, q.2, a.4, qc.2). Assim, entre os meios ordinários para a remissão da culpa original, Deus estabeleceu a circuncisão, no Antigo Testamento, e o Sacramento do Batismo, no Novo Testamento. Afirma o Doutor Angélico que a circuncisão perdoava o pecado original e conferia a graça santificante com todos os seus efeitos, embora permanecesse o impedimento para se entrar no Reino dos Céus, que seria supresso somente com a Paixão de Cristo; o Batismo, por sua vez, concede não apenas o perdão do pecado original e de toda culpa atual, como também o reato da pena a eles devida, conferindo graças incomparavelmente mais copiosas que a circuncisão (cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.70, a.4). Contudo, o poder de Deus não se limita à circuncisão ou ao Sacramento do Batismo, mas os transcende, podendo inclusive conferir os seus efeitos sem a realização desses ritos (cf. Idem, q.64, a.3; a.7; q.66, a.6; q.68, a.2).
[3] Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.27, a.5.
[4] Cf. CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. São José: quem o conhece?… São Paulo: Lumen Sapientiæ, 2017, p.29-47.
[5] Os nomes de São Joaquim e Sant’Ana aparecem por primeira vez no Protoevangelho de São Tiago, escrito apócrifo do século II. Contudo, sua assimilação por parte dos Padres e escritores eclesiásticos, bem como sua inserção no culto litúrgico, desde o século VI no Oriente e século VIII no Ocidente, pesam decisivamente no sentido de tratar-se de um autêntico dado da Tradição. Donde conclui Bento XIV: “Sendo opinião geral, tanto na Igreja Oriental quanto na Ocidental, desde muitos séculos, que os pais da Santíssima Virgem se chamavam Joaquim e Ana, não há motivo para opor-se a esta sentença, sobretudo porque nada consta em contrário que não tenhamos rebatido com sólidas razões” (BENTO XIV. De festis Beatæ Mariæ Virginis, c.IX, n.19).
[6] O pecado de Adão privou todo o gênero humano da santidade e justiça original, lesando-o em suas próprias forças naturais, submetendo-o à ignorância, à morte e ao sofrimento e inclinando-o ao mal (cf. CCE 405). Essa inclinação ao pecado, denominada fomes peccati – literalmente, fogacho do pecado – ou concupiscência, leva o apetite sensitivo, no qual residem as paixões, a não se subjugar à razão e ao império da vontade. Segundo afirma São Tomás “no estado de inocência, ao contrário, o apetite inferior estava totalmente submetido à razão; por isso não havia nele paixões da alma, senão aquelas que eram subsequentes a um julgamento da razão” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.95, a.2). Mesmo após o Batismo, o homem precisa combater constantemente essa má inclinação, cujo ímpeto diminuirá à medida que ele progrida em graça e na prática da virtude.
[7] Cf. ALASTRUEY, Gregorio. Tratado de la Virgen Santísima. 4.ed. Madrid: BAC, 1956, p.25.

 

 

Artigo anteriorPai da Europa cristã
Próximo artigoAlma repleta de enlevo e de lógica
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, é fundador dos Arautos do Evangelho.

2 COMENTÁRIOS

  1. ?
    A leitura sobre esse artigo nos convida a ir além deste momento.
    Sabe-se que,isso ocorrerá de acordo com ordem natural desta reflexão linda e enriquecedora do princípio de tudo da Mãe de Deus.
    Compreende-se a partir deste artigo a natureza e conhecimento dos “avós de Jesus”…e por assim entender,a sua verdadeira excência que enriquece nossa fé. Nos mostrando os méritos de nossa Mãe Santíssima e puríssima como provedora do Espírito Santo, e neste contexto a verdadeira e inspiradora narrativa de São Joaquim e Senhora Sant’Ana’, avós de Jesus e nossa…Salve!!
    Leitura emocionante!
    Associada dos Arautos do Evangelho,
    Abraços fraternos e amazônicos,
    Itaituba-Pará,24/07/20.

    Sou Sandra C C Couto.
    ???

  2. Que as figuras de Santana e São Joaquim inspirem aos avós, fazendo-os protetores e cuidadores de seus netos.
    Que, por sua vez, os netos não esqueçam de seus avós, os visitem e lhes dão a alegria que eles merecem.

Deixe um comentário para Pedro Alexandre Ricciardi Ferreira Cancelar resposta

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui