Se não houvesse vida depois da morte, não haveria motivo para praticar a virtude. Com a sua Ressurreição, Cristo comprou a nossa, dando-nos a certeza de que com Ele reinaremos eternamente.

 

Um grande silêncio reina no salão. De vez em quando, ele é interrompido por soluços e lamentações de dor pela perda de alguém que ontem mesmo estava entre nós e já não está mais…

Uma senhora acerca-se do caixão com gesto compungido, um amigo do falecido chora desconsolado, outro faz o sinal da Cruz. A tristeza pervade os que tiveram maior convívio com o defunto ou foram por ele beneficiados. Não poucos se afastam do ataúde com fisionomia abatida, consternados pelo contato com seu corpo sem vida, pálido e frio. É preciso enterrá-lo em poucas horas, caso contrário, o mau odor contaminará todo o ambiente.

Do lado de fora, conversa-se à meia voz. Alguns questionam o porquê daquele trágico acontecimento, outros recordam fatos da vida de quem agora jaz inerte. Prestígio, honrarias, riqueza… ou quiçá miséria e sofrimento… Tudo passou!

Quem conheceu seu bisavô? E seu tataravô? Na maior parte dos casos, a resposta será negativa, pois já morreram há tempos. Morreram… E, mais dia menos dia, o mesmo se dará conosco. Que tremenda perspectiva!

Entretanto, a impostação de espírito católica é toda feita de esperança ante esta realidade inevitável para todos nós, pois cremos que Nosso Senhor Jesus Cristo venceu a morte com a sua Ressurreição gloriosa: “Estive morto, e eis-Me de novo vivo pelos séculos dos séculos; tenho as chaves da morte e da região dos mortos” (Ap 1, 18).

Uma evidência incontestável

Desde a mais remota antiguidade até a época presente muito se tem falado sobre o fim da vida humana, e talvez nenhuma realidade seja tão universal quanto esta: a morte.

Os homens podem contestar e pôr em dúvida verdades duras de serem ouvidas. Contra a evidência da morte, todavia, ninguém é capaz de se levantar, pois, ainda que seja para todos uma incógnita, dela não se escapa. “A sentença de morte foi escrita para todo o gênero humano. O homem deve morrer”,1 assevera o grande moralista Santo Afonso Maria de Ligório.

Morte de Santa Margarida da Hungria, por József Molnár – Coleção privada

“A primeira verdade absolutamente certa de nossa existência, para além do fato de existirmos, é a inevitabilidade da morte. Perante um dado tão desconcertante como este, impõe-se a busca de uma resposta exaustiva. Cada um quer, e deve, conhecer a verdade sobre o seu fim. Quer saber se a morte será o termo definitivo da sua existência, ou se algo permanece para além da morte; se pode esperar uma vida posterior, ou não”. 2

O tempo passa depressa. A morte se aproxima de todos como um ladrão, sem avisar da hora, dia e momento de sua chegada. Ela não pede licença, não respeita planos, não faz acordos. Por isso canta o salmista: “Reduzis o homem à poeira, e dizeis: ‘Filhos dos homens, retornai ao pó’, porque mil anos, diante de vós, são como o dia de ontem que já passou, como uma só vigília da noite” (Sl 89, 3-4).

O que é a morte?

Assim como os biólogos não conseguem formular uma definição exata do que é a vida, difícil é para qualquer homem explicitar o que é a morte. São Tomás nos dá algumas breves noções: “A morte é a ruína da vida”. 3 Ou “a morte em nós é a separação da alma do corpo”. 4 Separação violenta, pois a unidade substancial da pessoa humana, matéria e espírito, se desfaz de maneira dramática nesse momento.

Deus tirou o corpo de Adão do barro desta terra material e nele insuflou a vida, dando-lhe alma espiritual: “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2, 7). Por ser material, o corpo é corruptível; se lhe faltam os princípios vitais ele entra em decomposição. Já a alma tem outra vida, que é eterna, sobrevivendo, portanto, ao corpo que falece.

Para que estes dois elementos, contraditórios entre si, não se opusessem, o Criador deu ao primeiro homem o dom preternatural da imortalidade, que harmonizava sua natureza composta. Tendo sido cometido o pecado, porém, Deus retirou o dom concedido e entregou o ser do homem às suas leis meramente naturais, condenando o corpo a voltar à terra de que foi tirado, “porque és pó, e em pó te hás de tornar” (Gn 3, 19). No entanto, a alma, por ser incorruptível em sua natureza, subsiste separadamente.

Ao desfazer-se a unidade do seu ser, na hora da morte, o homem sofre uma dor atroz. Para termos uma pálida ideia, imaginemos alguém nos arrancando ao mesmo tempo, com alicates, todas as unhas das mãos e dos pés. Isto nos traria um sofrimento tremendo, mas muito menor do que aquele que se tem ao ocorrer a separação entre alma e corpo, intimamente unidos como matéria e forma!

Introduzida na História pelo pecado

Em estado de inocência original, como vimos, pelo dom da imortalidade o homem não morreria. Contudo, ao se deixarem enganar pela serpente, Adão e sua mulher caíram na falsa promessa do demônio. E como este nunca dá o que promete – pelo contrário, é isto o que ele tira! –, eles perderam os dons preternaturais e o domínio que ­possuíam sobre a natureza.

As penas às quais foram submetidos afetaram todos os seus descendentes. A maior delas foi a privação do estado de graça no qual haviam sido criados. Suas almas, que antes eram imaculadas, ficaram tisnadas pelo pecado. O drama da morte passou a fazer parte do seu dia a dia.

Imaginemos o que deve ter sentido Eva, expulsa do Paraíso Terrestre, ao se deparar com o fratricídio perpetrado por Caim. A primeira pessoa da História em morrer era seu próprio filho, Abel, a quem o irmão havia assassinado por inveja. Só aí ela compreendeu o fim terrível que aguardaria toda a humanidade, até a consumação dos tempos.

Foi o pecado que fez a morte surgir na História, pois, conforme ensina Santo Agostinho, com a queda de nossos primeiros pais entrou em seu corpo “uma espécie de enfermidade originada por aquela corrupção súbita e pestífera, perderam eles o vigor inalterável da juventude, na qual foram criados por Deus, para ir ao encontro da morte através das vicissitudes das idades. E ainda que os homens tenham vivido muitos anos depois, começaram a morrer no dia em que receberam esta lei da morte, que os condena à decadência senil”. 5

É nesse sentido que podemos entender a Escritura, quando lemos: “Deus não é o autor da morte” (Sb 1, 13). Foi por culpa do homem, portanto, que a morte passou a existir para si, embora haja nela “alguma razão de bem, ou seja, uma pena justa” 6 pela falta cometida.

Cristo Crucificado – Casa Monte Carmelo, Caieiras (SP)

Em Cristo, todos reviverão

Está consignado, também, que foi “por inveja do demônio que a morte entrou no mundo” (Sb 2, 24). Triunfou, pois, satanás, introduzindo entre os homens o pecado e, por consequência, a morte? Nunca! Muito elucidativas são as palavras do mesmo autor sagrado, ao afirmarem que “a morte não é a rainha da terra” (Sb 1, 14).

Ora, quem seria capaz de vencê-la com uma reparação à altura? Que ato de um homem mortal poderia reparar uma ofensa praticada contra Deus, infinito e imortal? Ao mesmo tempo que a reparação teria que vir de parte da natureza humana pecadora, somente uma reparação infinita poderia satisfazer a justiça para com Deus…

Quem, então, seria capaz de ressuscitar e triunfar da morte? O Homem-Deus! “Assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos reviverão” (I Cor 15, 22), afirma São Paulo.

Tal é grandeza de amor manifestada na Encarnação, pois, “se não tivesse tomado da nossa natureza a carne mortal, Cristo não teria possibilidade de morrer por nós”. 7 “Carregou os nossos pecados em seu Corpo sobre o madeiro para que, mortos aos nossos pecados, vivamos para a justiça” (I Pd 2, 24). Só “deste modo o imortal pôde morrer e dar sua vida aos mortais. Fez-Se participante de nossa morte para nos tornar participantes da sua vida”. 8

Sendo Deus, Jesus tem o “poder de dar sua vida e depois retomá-la; nós, pelo contrário, não vivemos quanto queremos, e morremos mesmo contra a nossa vontade. Ele, morrendo, matou em Si a morte; nós, por sua Morte, somos libertados da morte”. 9

A mais espetacular das vitórias

No Evangelho lemos como Caifás, ao tramar a Morte de Cristo, profetiza misteriosamente: “Convém que um só homem morra em lugar do povo” (Jo 18, 14). E é o mesmo texto sagrado que esclarece este mistério: “Aquele que fora colocado por pouco tempo abaixo dos Anjos, Jesus, nós O vemos, por sua Paixão e Morte, coroado de glória e de honra. Assim, pela graça de Deus, a sua Morte aproveita a todos os homens” (Hb 2, 9).

Entregando-Se a um suposto fracasso, estava o Salvador obtendo a mais espetacular vitória sobre o demônio e a morte. “A aparente catástrofe da Paixão e Morte de Nosso Senhor marca a ­irremediável e estrondosa derrota de satanás. Este, insuflando os piores tormentos contra Jesus, iludia-se, julgando que caminhava para um êxito extraordinário contra o Bem encarnado. Em sua loucura não percebia como estava contribuindo para a glorificação do Filho de Deus e para a obra da Redenção”. 10 Com efeito, a Morte e Ressurreição de Jesus não foram senão para que Ele “mostrasse seu poder, com o qual venceu a morte, e também nos desse a esperança de ressurgir dos mortos”. 11

“‘Ó morte onde está a tua vitória? Ó morte onde está teu aguilhão?’ (I Cor 15, 55), indaga desafiante o Apóstolo. Morrendo na Cruz, o Divino Redentor vencia não só a morte mas também o mal, e deixava fundada sobre rocha firme uma instituição divina, imortal – a Santa Igreja Católica, seu Corpo Místico e fonte de todas as graças –, que enfraqueceu e dificultou a ação da raça da serpente, privando-a do poder esmagador e ditatorial que exercera sobre o mundo antigo”. 12

Se não houvesse ressurreição, não haveria razão para deitar esforços em praticar a virtude. Se a morte fosse o fim de tudo, nada justificaria renunciar a uma vida de gozo desenfreado. Com a sua Ressurreição, Cristo comprou a nossa, dando-nos a certeza de que com Ele reinaremos eternamente. Assim, a tragédia da morte e a pena atroz que assolavam toda a humanidade transformaram-se em instrumentos de vitória. Com a Ressurreição de Cristo, a morte, que parecia ser um fim terrível, passou a ser a porta da glória para todos aqueles que O seguem e n’Ele nascem para a verdadeira vida. 

São Tomás de Aquino – Convento Sancti Spiritus, Toro (Espanha)

A imortalidade da alma exige a ressurreição

Diz o Doutor Angélico que sendo a alma essencialmente a forma do corpo, “é contrário à natureza da alma estar fora do corpo. Ora, nada do que é contra a natureza pode perpetuar-se. Logo, as almas não ficarão para sempre sem os corpos. Por conseguinte, permanecendo elas para sempre, devem unir-se novamente aos corpos. E nisso consiste a ressurreição. Por isso, parece que a imortalidade da alma exige a futura ressurreição dos corpos” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios. L.IV, c.79, n.10).

 

Notas

1 SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. Preparação para a morte. Considerações sobre as verdades eternas. Consideração IV, p.1. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1956, p.29.
2 SÃO JOÃO PAULO II. Fides et ratio, n.26.
3 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.53, a.1, ad 1.
4 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Super Sent. L.III, d.21, q.1, a.3.
5 SANTO AGOSTINHO. De peccatorum meritis et remissione. L.I, c.16, n.21. In: Obras. Madrid: BAC, 1952, v.IX, p.231.
6 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.164, a.1, ad 5.
7 SANTO AGOSTINHO. Sermo Guelferbytanus 3. In: COMISSÃO EPISCOPAL DE TEXTOS LITÚRGICOS. Liturgia das Horas. Petrópolis: Vozes; Paulinas; Paulus; Ave-Maria, 2000, v.II, p.376.
8 Idem, ibidem.
9 SANTO AGOSTINHO. In Ioannis Evangelium. Tractatus LXXXIV, n.2. In: Obras. 2.ed. Madrid: BAC, 1965, v.XIV, p.379.
10 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Até na hora da aparente derrota, o Sumo Bem sempre vence. In: O inédito sobre os Evangelhos. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2012, v.V, p.263.
11 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.50, a.1.
12 CLÁ DIAS, op. cit., p.263.
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