Ao levar um povo ao conhecimento do verdadeiro Deus e à prática das virtudes cristãs, a Igreja não destrói suas qualidades próprias, mas as sublima.

 

Muito se discute hoje sobre a atuação missionária da Igreja no período colonial, em particular na América. Acusam-na de ter promovido — ou de, ao menos, não ter impedido — o genocídio dos indígenas, a destruição de suas crenças, o aniquilamento de sua cultura. Bem outra, entretanto, é a verdade. Ressalvadas as falhas e pecados que neste vale de lágrimas acompanham toda obra humana, uma análise imparcial dos fatos nos mostra a prodigiosa obra não só religiosa, mas também civilizadora e social da Igreja junto às populações nativas.

Um eloquente exemplo desta realidade é-nos oferecido pela ação evangelizadora do Bem-aventurado José de Anchieta na então longínqua Terra de Santa Cruz.

“Todos recorrem a nós outros demandando ajuda,
e é necessário socorrê-los” – “Beato Anchieta” –
Palácio Anchieta, Vitória (Brasil)

Colonos à procura de ouro, missionários em busca de almas

Se a descoberta das Américas descortinou novos panoramas políticos e econômicos para a Europa no século XVI, não menores perspectivas abriu para a Igreja no campo espiritual. Aqui aportavam as naus repletas de ousados colonizadores e dedicados religiosos que, abandonando o continente civilizado, aventuravam-se pelas terras do Novo Mundo. Semelhantes no destemor, muito divergiam eles, porém, nos objetivos. Segundo expressão do Padre Anchieta, desembarcavam “os expedicionários em busca de ouro para as arcas do Rei, e os padres em busca de almas para o tesouro do Céu”.1

Animados por este espírito, chegaram os jesuítas ao Brasil em 1549, na armada do primeiro Governador Geral da Colônia, Tomé de Sousa. Compunham essa missão o padre Manuel da Nóbrega, outros três sacerdotes e dois irmãos leigos.

Em contraste com a exuberante beleza da terra, aqui encontraram um lastimável panorama espiritual: privados de qualquer assistência religiosa, os colonos portugueses haviam caído num completo desregramento moral; nas aldeias, achavam-se os índios — a quem deviam primordialmente anunciar o Evangelho — arraigados a vícios como a antropofagia, a embriaguez e a poligamia. Outros fatores dificultavam sua ação evangelizadora: a animosidade entre conquistadores e nativos, a cobiça dos primeiros e a desconhecida língua dos segundos.

Devido à grandeza da obra por realizar e a escassez de operários, uma nova leva de missionários foi enviada ao Brasil em 1553. É nela que encontramos o Irmão Anchieta, ainda não ordenado sacerdote.

Ardoroso catequista e promotor da cultura

Curiosamente, sua escolha para a evangelização do Brasil teve como principal fator a sua fraca saúde, para a qual se buscava remédio nas temperaturas elevadas do clima tropical. O físico débil abrigava, entretanto, uma alma cheia de vigor e abrasada de amor a Deus e ao próximo, como denota este trecho de uma carta por ele escrita ao Geral da Companhia: “Quase sem cessar, andamos visitando várias povoações, assim de índios, como de portugueses, sem fazer caso de calmas, chuvas e grandes enchentes de rios, e muitas vezes de noite por bosques muito escuros socorremos aos enfermos, não sem grande trabalho, seja pela aspereza dos caminhos, como pela incomodidade do tempo. […] Mas nada é árduo aos que têm por fim somente a glória de Deus e a salvação das almas, pelas quais não duvidarão dar a vida”.2 Tão santas disposições não poderiam deixar de produzir grandes frutos.

Segundo o método adotado pelos jesuítas, foram-se criando casas e seminários — localizados ­estrategicamente entre as vilas portuguesas e as aldeias indígenas — onde eram instruídas as crianças nativas e os filhos dos colonos. Ao mesmo tempo, formaram-se, em pontos não muito isolados do interior, núcleos destinados aos adultos, onde a catequese se fazia pela prédica, pelo exemplo e pelas pompas do culto, às quais os homens de todos os tempos e culturas foram sempre muito sensíveis. Não eram negligenciados, contudo, os aldeamentos mais distantes para onde, sempre que possível, também partiam missionários.3 Em toda parte, mas especialmente nas aldeias, poderíamos surpreender Anchieta rodeado por uma coorte de crianças ou adultos — brancos, mamelucos e índios — ávidos por escutá-lo.

Suas pregações eram entremeadas de versículos e imagens da Sagrada Escritura, porém não deixavam de refletir as circunstâncias locais. Sabia adaptar-se a seus ouvintes e mencionava, com a devida aplicação parenética, episódios muito frequentes na vida da Colônia, como quedas de cavalo e picadas de cobra. O desejo de tornar a doutrina católica acessível à compreensão e cultura dos “brasís” — como costumava chamar os nativos — aparece também nas inúmeras obras que escreveu em tupi, destinadas à catequese. Há um pitoresco exemplo registrado num de seus catecismos, onde ele enumera, entre as consequências do pecado original na obra da criação, a agressividade das onças e das cobras.4

Outra nota característica de seu apostolado foi a atividade poética, musical e dramática, “um dos meios de maior valor psicológico, utilizados pelos Jesuítas, para a infiltração do Cristianismo entre os índios e para a elevação do povo”,5 dado o grande pendor natural destes por tais manifestações artísticas. Compôs o santo missionário dramas sacros em tupi, para edificação e entretenimento nas aldeias cristãs. A Eucaristia e a Virgem Maria — suas mais ternas devoções — eram os principais temas das composições, além de histórias bíblicas próprias a instruir os silvícolas nas verdades evangélicas.

Quanto à música, esta foi incorporada de forma sistemática ao estudo dos meninos indígenas, constituindo-se primitivos “conservatórios” que admitiram, com o passar do tempo, os negros à mesma aprendizagem. Chegaram até nós muitas cantigas compostas por Anchieta em tupi e português, que o povo cantava pelas ruas e praças, e até mesmo nas cerimônias litúrgicas. “Assim, pois, se elevavam os costumes, se cultivava o gosto literário e artístico da terra, se organizavam grupos corais, se cristianizavam hábitos antigos e se promovia o esplendor do culto, com cerimônias magníficas, em que as Missas pontificais e a recepção dos Sacramentos alternavam com o regozijo do povo”.6

Fator de progresso e harmonia social

Mas se a finalidade que norteava a ação do padre Anchieta em sua missão era primordialmente religiosa, não deixava de ter imensa repercussão para o progresso social.

Neste sentido, de importância capital foram as aldeias formadas pelos jesuítas no litoral e zona contígua. Cada um desses numerosos núcleos tornou-se uma vila, e foi um método seguro e prático de fazer a passagem da vida da taba para a urbana, com a consequente sedentarização e incremento dos meios de subsistência que esta significava. Os primeiros passos da engenharia civil, bem como da atividade agrícola e pastoril, foram, muitas vezes, ensinados pelos próprios religiosos.7

Junto aos religiosos, os índios encontravam eficaz proteção contra as pretensões escravagistas de muitos colonos – “A conversão de Pero Corrêa” – Igreja de Santa Cecília, São Paulo

Dentre todas as povoações que se fundaram, a mais famosa e característica da ação dos missionários nesta parte do continente foi a de Piratininga. Começou pela construção de uma capela de taipa e de casas cobertas de palha e cercadas de ripas; as moradias se alinhavam formando praças e ruas, convenientemente aplainadas. Ergueu-se também o primeiro colégio canonicamente constituído dos jesuítas no Brasil, inaugurado com uma Missa em 25 de janeiro de 1554, festa da conversão de São Paulo, o Apóstolo das Gentes. Desta coincidência proveio o nome do colégio que se acabava de fundar, e, mais tarde, da grande cidade brasileira que ali nascia.8

O jovem José de Anchieta, contando apenas vinte anos, foi o esteio deste colégio. Sendo o único a possuir a formação necessária, ensinava as “Humanidades” aos estudantes da Companhia, e o catecismo e primeiras letras às crianças indígenas, pois estas recebiam, além da educação religiosa, a conveniente instrução primária.9 Foi neste período que Anchieta escreveu a primeira gramática de língua tupi-guarani, documento de inapreciável valor linguístico, filológico e histórico.10

Em pouco tempo o Colégio se tornou não apenas o centro da vida civil e social, mas também o refúgio de todos nas calamidades públicas. Narra o Beato Anchieta, a propósito da epidemia de varíola de 1563: “Em semelhantes enfermidades nem sabem nem têm com que se curem, e assim todos recorrem a nós outros demandando ajuda, e é necessário socorrê-los não só com as medicinas, mas ainda muitas vezes com lhes mandar a levar de comer e a dar-lho por nossas mãos. E não é muito isto com os índios, que são paupérrimos. Os mesmos portugueses parece que não sabem viver sem nós, assim em suas enfermidades próprias, como de seus escravos. Em nós outros têm médicos, boticários e enfermeiros: nossa casa é botica de todos, poucos momentos está quieta a campainha da portaria, uns idos, outros vindos a pedir diversas coisas”.11 Essa situação levou os jesuítas a introduzir em suas aldeias enfermarias e hospitais para assistência aos mais necessitados.

Outro inapreciável benefício advinha dos aldeamentos: junto aos religiosos, os índios encontravam eficaz proteção contra as pretensões escravagistas de muitos colonos. Os missionários exerceram com frequência o papel de mediadores entre portugueses e nativos. E se a harmonia social era já favorecida pelas próprias cerimônias religiosas — nas quais tomavam parte, indiscriminadamente, brancos, mamelucos e índios — não faltaram ocasiões em que a intervenção direta dos jesuítas foi fator decisivo para sanar discórdias e ódios entre as duas raças.

Fato característico deu-se nas aldeias de Iperoig, atual Ubatuba, numa contenda entre os portugueses e a tribo dos Tamoios, aliada aos franceses que procuravam conquistar a Baía de Guanabara. Vendo a inquietação que se espalhava por toda a capitania, o padre Manuel da Nóbrega decidiu ir em pessoa travar as pazes com os índios, e levou como intérprete o Irmão José de Anchieta. Partiram eles em maio de 1563, entregues à Divina Providência e dispostos a todos os sacrifícios, “como homens morti destinatos, não tendo mais conta com morte nem vida que quanto for mais glória de Jesus Cristo e proveito das almas, que Ele comprou com sua vida e morte”.12

Após passar por inúmeros perigos –– sobretudo no período em que Anchieta ficou só, como refém dos tamoios –– conseguiram finalmente restabelecer a concórdia. E não só: por sua conduta, o jovem religioso havia conquistado o respeito dos chefes das aldeias, e usado de seu cativeiro como ocasião para novas conversões.

A vida humana elevada pela Fé

Uma narração completa da ação evangelizadora levada a cabo pelos jesuítas no Brasil, e muito particularmente pelo padre Anchieta, com seus inseparáveis corolários socioculturais, de muito extrapolaria os limites destas linhas. Tendo visto alguns de seus aspectos, resta-nos considerar, embora de modo sucinto, a causa mais profunda desta profícua aliança entre a difusão da Fé Católica e o bem temporal do povo que a acolhe.

Atendendo ao mandato de seu Divino Fundador de ir por todo o mundo e pregar o Evangelho a toda criatura (cf. Mc 16, 15), a Igreja “não subtrai coisa alguma ao bem temporal de nenhum povo, mas, pelo contrário, fomenta e assume as qualidades, as riquezas, os costumes e o modo de ser dos povos, na medida em que são bons; e assumindo-os, purifica-os, fortalece-os e eleva-os”.13 Isto se passa porque, ao levar um povo ao conhecimento do verdadeiro Deus e à prática das virtudes cristãs, a Igreja acrescenta a seus dons naturais os dons sobrenaturais. Assim, não destrói suas qualidades próprias, mas as sublima, já que “a graça não suprime a natureza, mas a aperfeiçoa”.14

É o que assinalou Bento XVI por ocasião de sua viagem ao Brasil, em 2007: “O que significou a aceitação da fé cristã para os povos da América Latina e do Caribe? Para eles, significou conhecer e acolher Cristo, o Deus desconhecido que os seus antepassados, sem o saber, buscavam nas suas ricas tradições religiosas. Cristo era o Salvador que esperavam silenciosamente. Significou também ter recebido, com as águas do Batismo, a vida divina que fez deles filhos de Deus por adoção; ter recebido, outrossim, o Espírito Santo que veio fecundar as suas culturas, purificando-as e desenvolvendo os numerosos germes e sementes que o Verbo encarnado tinha lançado nelas, orientando-as assim pelos caminhos do Evangelho”.15

Ao “Novo Mundo” do século XVI aprouve Deus enviar santos missionários que o conduzisse pelas purificadoras e elevadas sendas da fé em Cristo Jesus. Não menos necessitada encontra-se a sociedade contemporânea, cujos valores cristãos são cada vez mais negligenciados, quando não abandonados. Possa o exemplo do Beato José de Anchieta ser um estímulo aos evangelizadores chamados, nos dias atuais, a reconduzir tantos filhos à casa paterna, cooperando para que “o desígnio de Deus, que fez de Cristo o princípio de salvação para todo o mundo, se realize totalmente”.16

Notas


1 VIOTTI, SJ, Hélio Abranches. Anchieta: o apóstolo do Brasil. São Paulo: Loyola, 1966, p.38.
2 BEATO JOSÉ DE ANCHIETA, SJ. Carta ao Geral Pe. Diogo Laínes, 8/6/1560. In: Obras Completas. Cartas. Correspondência ativa e Passiva. 2.ed. São Paulo: Loyola, 1984, v. VI, p.158.
3 Cf. ROCHA POMBO, José Francisco da. História do Brasil. São Paulo: Brasileira, 1967, v.I, p.184.
4 Cf. VIOTTI, op. cit., p.230.
5 LEITE, SJ, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Loyola, 2004, v.I, p.258.
6 Idem, p.260.
7 Cf. Idem, p.100;108.
8 Cf. ROCHA POMBO, op. cit., p.185-186.
9 VIOTTI, op. cit., p.62.
10 Cf. LEITE, op. cit., p.392.
11 BEATO JOSÉ DE ANCHIETA, SJ. Carta ao Geral Pe. Diogo Laínes. São Vicente, 8/1/1565. Op. cit., p.252.
12 Idem, ibidem, p.204-205.
13 CONCÍLIO VATICANO II. Lumen gentium, n.13.
14 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q.1, a.8, ad.2.
15 BENTO XVI. Discurso na sessão inaugural dos trabalhos da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, 13/5/2007.
16 CONCÍLIO VATICANO II. Lumen gentium, n.17.
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